Já faz quase um ano desde que Lost Words: Beyond the Page foi lançado exclusivamente no Google Stadia, deixando vários jogadores curiosos com o que prometia. Aos moldes do Wii U, em que vários bons títulos não alcançaram o público que mereciam, o jogo foi então relançado em 6 de abril, para PC via Steam, PS4, Xbox One e Nintendo Switch, deixando essa tocante história enfim disponível para o público que merece.
Cabe destacar que essa é mais uma obra da premiada roteirista Rhianna Pratchett, responsável por Tomb Raider (Multi) e Rise of the Tomb Raider (Multi), Mirror's Edge (Multi), Heavenly Sword (Multi), entre outros, já carregando para o game um grande fardo, ainda mais sabendo que Rhianna é filha do escritor Terry Pratchett, uma lenda do gênero de fantasia.
Não à toa, Lost Words e todos os seus demais roteiros têm aspectos em comum, como apresentar protagonistas femininas fortes, mas em comparação com os outros jogos, dessa vez o roteiro adota um tom mais calmo e com muita emoção e sensibilidade para contar uma história muito mais pessoal.
Tudo se inicia quando a jovem Isabelle decide que gostaria de se tornar escritora e recebe um diário de sua avó. A partir daí, ela começa a escrever sua primeira história, que também incorpora suas experiências pessoais e às vezes dramáticas ao longo de toda a trama
Enquanto escreve, Isabelle se incorpora em uma personagem que pode ser criada a partir de diferentes nomes (Robyn, Grace ou Georgia) e esquemas de cores, representando uma forma fictícia de si mesma e vivendo no mundo fantástico de Estoria. Daí, a trama alterna entre dois planos narrativos: as experiências no mundo real, com Isabelle, e as experiências no mundo fantástico fruto da sua imaginação, com Robyn — o nome que escolhi.
Sobre as experiências no mundo real, enquanto jogamos como Isabelle, experimentamos a narrativa através de passagens de texto e imagens que ela escreve em seu diário. Assim, obtemos insights profundos sobre os eventos e o mundo emocional da garota.
Estas sequências podem ser um pouco longas demais para quem não se interessa tanto por histórias sentimentais, mas suas formulações parecem muito realistas e transmitem muitas emoções, especialmente no final do jogo, o que garantirá que quase nenhum jogador tenha os olhos secos. Além disso, estes eventos são transportados para os acontecimentos em Estoria e seus reflexos são sentidos por lá também.
"As palavras têm poder"!
Em termos de jogabilidade, ambos os níveis narrativos têm sua própria mecânica e formas de contar histórias. No "mundo real", os desenvolvedores inventaram uma mecânica de jogo extremamente interessante para evitar que os eventos se tornem chatos, ou ainda resolvidos de qualquer jeito. O jogador vê as palavras da narração, frases e desenhos aparecerem nas páginas do diário, e deve interagir com elas na forma de quebra-cabeças até que um pequeno rasgo na página do diário permita que o avatar da Isabelle passe para a próxima.
Além da escrita, que também é lida em voz alta completando a belíssima trilha sonora, há destaques adicionais na forma de pequenos asteriscos que atuam como anotações colecionáveis e são adições não faladas completamente opcionais, mas ainda assim incrivelmente interessantes por adicionar mais opinião e profundidade na narrativa.
Os quebra-cabeças têm inclusive uma grande variedade. Às vezes temos que colocar as palavras de uma frase na ordem correta, às vezes temos que construir com o nosso avatar uma escada para a "saída" da página com palavras em movimento, e às vezes até mesmo temos que interagir com as imagens para mudá-las segundo o verbo que selecionamos — acredite, é bem legal.
Já em Estoria, o mundo fantasioso criado pela protagonista, a aventura pode parecer um jogo de plataforma bastante simples à primeira vista, mas também surpreende com uma nova forma de gameplay que é constantemente desenvolvida ao longo da jogatina e usada para muitos quebra-cabeças: O Livro Mágico das Palavras, em tradução livre!
Usando os botões de ombro, a personagem pode acessar um livro que contém apenas uma única palavra no início. Ela começa com a palavra rise (subir, ascender, levitar), que podemos usar para influenciar o mundo do jogo com a ajuda de um vaga-lume, que controlamos com o analógico direito. Podemos levantar as coisas com ele, para que seja possível alcançar locais mais elevados ou passar por debaixo de obstáculos.
À medida que o jogo avança, recebemos mais palavras como fix, break e ignore (consertar, quebrar e ignorar respectivamente), e cada uma tem efeitos interessantes sobre o mundo criado por Isabelle. Apesar da ideia bacana, a mecânica fica relativamente aquém de seu potencial, já que apenas lugares específicos e destoantes do resto do cenário surtem efeito e os demais elementos do mundo simplesmente não reagem à magia.
Infelizmente, esse sentimento de "ainda falta alguma coisa" também se repete no resto da jogabilidade. As próprias mecânicas de platforming costumam falhar em alguns trechos, em especial se você forçar um pouquinho as hitboxes e outros caminhos não convencionais — não que um jogador casual também fosse enfrentar tais problemas.
Além disso, por mais amorosa que seja a ideia, o caminho é sempre estritamente linear e não há nada a descobrir além de vaga-lumes espalhados, que podemos encontrar como uma espécie de colecionável nas áreas de cada capítulo da história.
Mais alguns caminhos de ramificação poderiam ter sido utilizados aqui, ou então, à la metroidvania, teria sido interessante poder voltar mais tarde com novas palavras no livro de feitiços para desbloquear novas áreas ou trechos não contados da história. No entanto, embora possamos rejogar os níveis novamente através da seleção de capítulos caso desejemos coletar mais vaga-lumes, isso não tem efeito na jogabilidade ou na progressão da história.
Você não deve esperar nenhuma trama de ação grandiosa como em um AAA, mas o estilo artístico desenhado à mão sabe como convencer. Os personagens, assim como os fundos das fases, parecem ter sido desenhados com aquarelas e assim sublinham a premissa de que a história deve acontecer no diário de uma jovem garota.
São todos excepcionalmente bonitos, o que me surpreendeu bastante, uma vez que todo material de divulgação foi feito com artes que remetem a um jogo de baixo orçamento mais do que reflete a realidade artística do game, o que é uma pena.
Embora o game só esteja disponível com dublagem em inglês, independentemente do idioma selecionado, — que por sua vez não conta com o português — não é tão difícil de entender para os que já conhecem relativamente bem a língua, especialmente porque existem legendas a todo momento.
Uma menção especial deve ser feita à grande trilha sonora de David Housden, que consegue sublinhar habilmente as emoções do jogo e introduzi-las cirurgicamente em locais de tal forma que elas são ainda mais imersivas e profundas.
Não julgue um livro pela capa
No geral, eu me diverti muito com Lost Words. Rejogá-lo em outro idioma é ainda um ótimo exercício de línguas, já que você terá que manipular textos gramaticalmente corretos e aprender o uso dos verbos a todo momento.
Por mais que o jogo aborde uma história muito mais pessoal em relação às demais de Rhianna Pratchett, não pode ser comparada com suas obras anteriores, embora provavelmente ninguém esperasse uma versão derivada de Lara Croft ou Nariko na forma da jovem Isabelle, ou da personagem de seu livro.
Ainda que refém de falhas evitáveis, Lost Words: Beyond the Page é fortemente recomendado a qualquer pessoa que queira ver algo um pouco "fora da caixa", com um teor artístico elevado, ou que esteja mais disposta a apreciar o game aos poucos, ao invés de jogá-lo de uma só vez. A direção de arte do jogo por si só já faz dessa uma experiência singular e a maneira como foram articuladas as cenas de progressão da narrativa certamente servirá de referência futura para novos títulos. Agora que ele está acessível a um público mais amplo, esperemos que tenha enfim a atenção que merece.
Prós
- Todo o design do game é simplesmente belíssimo;
- A trilha sonora é muito envolvente e bem-composta;
- Narrativa muito relacionável, sensível e tocante.
Contras
- As mecânicas de plataforma não funcionam corretamente 100% das vezes;
- A ausência de mapeamento de botões para uso das palavras incomoda;
- A falta do idioma português pode ser um empecilho.
Lost Words: Beyond the Page — Switch/PS4/XBO/PC/Stadia — Nota: 8.5Versão utilizada para análise: Switch
Revisor: Davi Sousa
Análise produzida com cópia digital cedida pela Modus Games