Ainda que possa parecer óbvio, convém destacar que muitos da redação — incluso este que vos escreve — têm grande apreço pela franquia The Legend of Zelda, entre outras IPs da Nintendo. Contudo, nada disso nos tira a liberdade (e talvez até a responsabilidade) de tratar de assuntos difíceis relacionados à Big N e seus consumidores. Receio que este seja um desses assuntos. Por isso, peço paciência e atenção sua, caro leitor, para o que tenho a lhe dizer, ainda que, obviamente, não deva se sentir obrigado a concordar com todas as minhas conclusões.
Durante e depois do aguardado Nintendo Direct
No final do último Nintendo Direct, muitos fãs de The Legend of Zelda receberam com grande entusiasmo o anúncio da versão HD de The Legend of Zelda: Skyward Sword (Wii), de 2011.
Até aí, não há nada com o que se espantar na recepção dos fãs. Afinal, não estamos falando apenas de mais um Zelda dessa que continua a ser uma das melhores franquias dos videogames. Estamos falando também de um dos jogos mais importantes para a compreensão da lore da série, além de um título aclamado (93/100 no Metacritic) e popular, com mais de três milhões e meio de cópias vendidas (segundo a CESA Games White Papers).
Ainda que Skyward Sword seja o menos destacado — tanto em crítica quanto em vendas — entre os jogos principais em 3D da franquia, isso não significa que seja ruim ou impopular. Muito pelo contrário. Definitivamente sua qualidade não está sob suspeita; mesmo que não agrade a todos, especialmente por implementar uma jogabilidade peculiar com o uso (ou talvez até abuso) do Wii Motion Plus.
Mas e depois que o Direct se encerrou? Bem... não demorou mais que alguns segundos para que caminhasse pelas teias da internet algo que, com razão, espantaria grande parte da comunidade gamer: o preço de US$ 59.99 do título em pré-venda na eShop. Porém, com um detalhe que muitos não notaram: quem é o responsável por esse valor monstruoso que arrancou lágrimas e rupees dos fãs de The Legend of Zelda.
E, se vocês estão achando muito, imaginem se tivesse saído a US$ 69.99! Esse valor foi sugerido por um vazamento da Amazon em agosto de 2020.
Considerando o contexto acima, ponho aos seus cuidados, caro leitor, meu ponto de vista sobre o porquê que sessenta dólares deve sim ser considerado um valor alto demais para The Legend of Zelda: Skyward Sword HD. Além disso, peço que me acompanhe em uma pequena quest para desvendar as origens desse espantoso valor para uma remasterização de um jogo que, mesmo à época de lançamento, dez anos atrás, custava US$ 49.99 e que atualmente encontra-se a US$ 19.99 na eShop do Wii U.
Sim, as remasterizações da Nintendo são mais caras que a média
Para começar essa discussão, considere apenas remasterizações (com ou sem conteúdo extra) feitas pela Nintendo nos últimos anos para Switch. Refiro-me a títulos como Mario Kart 8 Deluxe (2017), Donkey Kong Country: Tropical Freeze (2018), New Super Mario Bros. U Deluxe (2019), Pikmin 3 Deluxe (2020) e Super Mario 3D World + Bowser’s Fury (2021). Todos esses títulos sabidamente vendidos a preço cheio (US$ 59.99); muitos ainda com esse valor após anos de seus respectivos lançamentos.
Independentemente da boa ou má qualidade com que a Nintendo adapta seus títulos para o Switch, é fácil constatar que, nos últimos anos, a Big N tem vendido suas remasterizações acima do valor médio de mercado. Por contraste, basta considerar alguns títulos inquestionavelmente populares e aclamados que receberam notáveis remasterizações ou mesmo remakes de outras grandes empresas no decorrer de toda a última década, mas geralmente custando US$ 39.99 ou, quando muito, US$ 49.99.
A título de comparação, e tal como divulgado pelo Coelho no Japão, Tony Hawk's Pro Skater 1 + 2 (Switch), publicado pela Activision, será lançado com o preço de US$ 39.99. Vale ressaltar que, nesse caso, trata-se não só de jogos originalmente muito populares e aclamados, mas também de uma coletânea de remakes, não apenas de remasterização, e sua qualidade já foi atestada em nossa análise.
E todos são lendários
— #Coelho no Japão 🇯🇵🇧🇷👾⛩ (@rodrigocoelhoc) February 23, 2021
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Não há surpresa no preço da Activision; é o mesmo do recente Crash Bandicoot N. Sane Trilogy, de 2017. Ambos são lançamentos que estão acompanhando o valor de mercado de remasterizações e até remakes desde o início da década.
Antes disso, Final Fantasy X/X-2 HD Remaster, da Square Enix, também foi lançado a US$ 39.99 para PS3 e PS Vita em 2014. Final Fantasy X originalmente foi um dos jogos mais vendidos no PS2, além de ter recebido grande aclamação crítica, tanto quanto outros clássicos da série Final Fantasy. E lembro que as aguardadas remasterizações dos aclamados Ico e de Shadow of the Colossus (PS3), publicados pela Sony, vieram em 2011 em uma só coletânea, também por US$ 39.99. Isso para não falar no remake completo de Shadow of the Colossus para PS4, também a esse valor.
Um dos raros títulos readaptados aos consoles recentes e que saiu com valor um pouco acima da média, mas ainda abaixo de US$ 59.99, foi Final Fantasy XII: The Zodiac Age, a US$ 49.99 para PS4, em 2017.
Podemos lembrar ainda da coletânea Halo: The Master Chief Collection, da Microsoft, que incluía Halo: Combat Evolved Anniversary, Halo 2: Anniversary, Halo 3, Halo 3: ODST, Halo 4 e Halo: Reach, que, em 2019, quando lançada para PC, também custava US$ 39.99. Alguns desses títulos possuem médias no Metacritic iguais ou muito próximas (95/100 e 97/100) dos aclamados jogos do bigodudo em 3D, e também com popularidade comparável.
Em suas respectivas épocas, tanto Halo 2 (Xbox) quanto Halo 4 (X360) venderam mais que Super Mario Sunshine (GC), enquanto Halo 3 (X360) vendeu até mais que Super Mario 64 (N64) e só ligeiramente menos que Super Mario Galaxy (Wii): 12,8 milhões de unidades contra 12,12 milhões.
Talvez nenhuma franquia goze da influência a longo prazo que Super Mario exerce na indústria, mas isso, em comparação com franquias tão relevantes quanto Super Mario, em curto ou médio prazo, poderia justificar uma coletânea como a de Super Mario 3D All-Stars (Switch) a US$ 59.99? Acho muito difícil. Embora isso não signifique que tal coletânea não possa “valer a pena” para ninguém, pois isso sempre dependerá do proveito que cada consumidor possa tirar desse produto.
Essas remasterizações estão acima da média, mas não exatamente "supervalorizadas"
Uma coisa é um produto estar um tanto acima do valor médio do gênero a que pertence, outra coisa é estar supervalorizado.
Considere que você tenha ido a uma padaria para comprar pão e a unidade desse produto custe entre 25% e 50% a mais do que o mesmo produto em outros locais. Isso significaria que lá o pão está com um preço alto, mas alguém ainda poderia comprá-lo por outras razões, como pela proveniência dos ingredientes do pão, o atendimento ou modo como o produto é exposto, a localização da padaria no bairro, ou mesmo a confiança na empresa com base em outros bons produtos vendidos no passado. Ao meu ver, também há razões contextuais, como essas, para que as remasterizações da Nintendo tenham o preço atual.
Por outro lado, uma coisa diferente seria o pão dessa mesma padaria custar de 100% a 200% a mais por conta de que é a única padaria da cidade ou limitou seu estoque de vendas propositalmente, apesar da alta demanda. Nesses casos, trata-se de uma supervalorização do produto. Em outras palavras, claramente o pão não vale aquele preço, mas algo externo e planejado está fazendo com que os clientes comprem mesmo assim.
Em situações de alta supervalorização de produtos, cabe às autoridades jurídicas de cada país decidirem se uma empresa está, de fato, praticando abuso de preço ou não. No caso do Brasil, as autoridades avaliarão a situação conforme o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Particularmente o artigo 39, que prevê que é vedado ao fornecedor de produtos ou serviços elevar sem justa causa os valores cobrados. Assim, embora no Brasil exista o livre mercado, segundo o Procon, este aumento não pode acontecer de forma muito desproporcional.
Entretanto, não me parece que a Nintendo esteja, de fato, supervalorizando suas remasterizações. O fato é que um grande número de consumidores está genuinamente disposto a pagar US$ 59.99 por essas remasterizações. Prova disso é que em poucos dias após seu anúncio, The Legend of Zelda: Skyward Sword HD já estava no topo de vendas na Amazon de vários países e, em alguns deles, levando ao esgotamento de estoque — isso há cinco meses do lançamento!
Assim, ainda que mais pessoas venham a comprar Skyward Sword HD por, digamos, dez ou vinte dólares a menos, esse número a mais de compradores não compensaria o tanto que a empresa deixaria de ganhar daquele número menor de consumidores (mas ainda grandioso) disposto a pagar o valor atual.
Ora, nesse contexto, a Nintendo, como qualquer outra empresa (Sony, Microsoft etc.), está visando lucros sem extrapolar os limites legais de mercado. E, se isso é verdade, cabe a seus consumidores mostrar que sua estratégia de negócios precisa ser mudada.
Para reverter tal comportamento da Big N, não é preciso garantir que ninguém compre seus produtos, mas sim que menos pessoas o façam. Isso levará a empresa a concluir que vale mais a pena baratear seus jogos para alcançar um maior público do que mantê-los a US$ 59.99 para apenas um pequeno grupo disposto a comprá-los a esse preço.
Hum... Então isso significa que a Nintendo não tem nenhuma culpa nessa história? Não exatamente...
A Nintendo não é uma instituição de caridade, mas pode obter vantagens com atitudes pró-consumidor
Ainda que empresas como a Nintendo ou a Sony não sejam instituições de caridade, elas podem obter lucros de modo legal, justo, ecologicamente sustentável e pró-consumidor. Idealmente é esperado que as grandes empresas se esforcem para isso, o que melhorará sua reputação.
Todavia, quando grandes empresas tomam decisões consideradas “pró-consumidor”, normalmente não o fazem simplesmente por amor aos seus fãs, mas também porque julgam que podem obter alguma vantagem. E a própria Nintendo sabe muito bem disso.
Entre as atitudes pró-consumidor mais recentes da Big N, podemos citar o fato de Animal Crossing: New Horizons (Switch) oferecer periodicamente várias grandes atualizações gratuitas para aqueles que possuem o jogo. Essa atitude pró-consumidor motiva novos jogadores a comprar o título, além de manterem a assinatura online, pois, mesmo que não seja obrigatória para a jogatina, muitas assinaturas foram feitas em função desse jogo.
Outro exemplo é o da última atualização de Super Mario Maker 2 (Switch). Essa atualização incluiu muitas novidades nesse amado jogo de plataforma da Big N. Entre elas, a possibilidade de criar mundos como o visto em Super Mario World (SNES).
Essa atitude pró-consumidor melhorou a imagem da empresa durante a comemoração do aniversário de 35 anos do Mario, em 2020. Além disso, a atualização incentivou mais jogadores a assinarem o serviço online do console, uma vez que esse jogo também é um dos carros chefes da Big N para multiplayer online.
Ocorre que, assim como nesses exemplos, a Nintendo poderia obter vantagens ao baixar o valor de suas remasterizações. A curto prazo, poderia não compensar, mas, a médio ou longo prazo, melhoraria a reputação da empresa, convencendo mais jogadores de outras plataformas a adquirirem o híbrido.
Além disso, o preço mais baixo expandiria a comunidade de fãs das franquias da Nintendo, especialmente aquelas que não são muito grandes, como Pikmin, o que aumentaria o número de consumidores propensos a comprar suas sequências ou mesmo amiibo e outros itens colecionáveis.
A Nintendo, ao vender suas remasterizações a US$ 59.99, assume uma escolha específica de negócios. Não sei se a melhor ou a pior, mas certamente apenas uma das possíveis, e que, como esperado de uma escolha de negócios, não lhe traz somente vantagens.
O que fazer?
Como consumidores, precisamos compreender o contexto do produto que compramos. De onde vem? Foi feito em que circunstâncias? Seu valor é justo? Essas perguntas valem para um pão de padaria, por exemplo, tanto quanto vale para um jogo de videogame.
O título é original? Se não, se é um remake, um remaster ou um port, então de onde ele vem? Como foram as circunstâncias de sua criação, a adaptação foi bem-feita e teve um desenvolvimento oneroso? Será que a empresa estressou demais seus funcionários no processo? Será que o valor se justifica pelo contexto de sua criação e pela média do valor no mercado?
Não serei eu que responderei a essas e outras perguntas para você, caro leitor. Na verdade, todos nós temos de respondê-las toda vez que resolvemos comprar algo. Mas uma coisa é certa: na falta de podermos tomar decisões pelas empresas, podemos dar razões para que elas mudem as suas!
Por isso, não esqueça, assim como uma possível preferência por pão integral pode levar padarias a fazerem mais pão desse tipo em detrimento de algum outro, também você pode obrigar empresas de games a trazerem jogos melhores e com um preço mais justo! Ainda que isso dependa de um volume consideravelmente grande de consumidores.
Agradeço a paciência e a atenção de todos por essa longa leitura!
Seja qual for a decisão em relação a Skyward Sword HD, recomendo fortemente que fique atento a possíveis promoções deste e de outros títulos. Sempre que houver, eu e meus colegas estaremos aqui para comunicá-las. No mais, com respeito e cordialidade, sinta-se à vontade para externar sua opinião sobre o assunto nos comentários abaixo.
Revisão: José Carlos Alves