Jogos superdifíceis ainda fazem sentido?

Com a quantidade de jogos e conteúdos disponíveis atualmente, a dificuldade exagerada pode afastar mais do que atrair.

em 19/03/2021


Quando eu ganhei o meu primeiro videogame (um clone do nintendinho), uma das primeiras coisas que fiz foi procurar quais cartuchos podia encontrar na locadora que ficava perto da minha casa. Naquela época os jogos eram caríssimos e a solução mais viável era alugar as fitas para jogar durante curtos períodos. Em pouco tempo eu já era sócio de quase todas as locadoras que encontrei e comecei a pesquisar o que valia mais a pena alugar. Inevitavelmente, fui parar nos títulos mais famosos do console: Super Mario Bros, Ninja Gaiden, Megaman etc., mas logo percebi que por mais que jogasse eu nunca ficava bom o suficiente para zerar alguns daqueles jogos. Na verdade, pelo que via nas revistas que comprava para pegar dicas, eu nem chegava perto disso.

Era meio frustrante, mas ainda assim parecia que isso fazia parte da experiência da época. Aliás, essa era também a época dos fliperamas, e jogos difíceis de terminar eram algo comum. Claro, sempre tinha alguma pessoa na escola que se gabava de ter terminado Ghosts 'n Goblins ou algo parecido, mas todo mundo sabia que era só história. Afinal, aquilo era praticamente impossível.


Hoje, apesar de estarmos em uma situação bem distinta, com muitos títulos e possibilidades, ainda vemos alguns desenvolvedores se empenhando em criar experiências de dificuldade extrema. Claro que no final tudo é questão de gosto e adaptação, mas, mesmo assim, eu penso que esse tipo de game não é o mais interessante, e explico o porquê.

Síndrome de Charlie Brown

Antigamente, ao ligar o console, nós nos submetíamos ao seguinte ciclo (que acho que posso chamar de síndrome de Charlie Brown): tentar de maneira esperançosa, falhar miseravelmente, se sentir a pessoa mais perdedora do mundo e recomeçar todo o processo.

No geral, havia uma coisa que unia praticamente todos os jogadores: a sensação do fracasso. Não foram poucas as vezes em que eu quase quebrei uma fita de tanta raiva. Também não foram poucos os momentos em que eu dizia para mim mesmo que não ia mais tentar. Mas, como disse antes, esse tipo de game era o símbolo das possibilidades da época. Muitos eram incrivelmente curtos, e o que dava longevidade a eles era justamente sua dificuldade. Ao mesmo tempo, gastar dinheiro em um cartucho não era uma coisa que fazíamos de maneira tão simples quanto comprar jogos indies nas promoções da Steam. Por esse motivo, cada investimento tinha que valer muito a pena.

Mas essas barreiras não nos servem mais. Soa muito estranho agora, por exemplo, lembrar que o Super Mario Bros. 2 original (que ficou conhecido depois como The Lost Levels) não foi lançado no Ocidente justamente porque era considerado difícil demais para o público daqui. Claro, a dificuldade como estratégia de level design continua existindo. No entanto, muitos títulos mais ou menos recentes, como Super Meat Boy, Exit the Gungeon e Cuphead têm seu sentido de existir, principalmente por conta de sua dificuldade num nível enlouquecedor. Mas será que isso tem a ver apenas com level design? Eu acho que não.

É para ver, não é para jogar

Sempre que encontro algum game que se vende pelo quão difícil ele é, fico pensando o seguinte: é um jogo para streaming. Afinal, quem assiste provavelmente se diverte mais. É estranho, mas a ideia de ver alguém engasgando de raiva por não conseguir avançar parece mesmo divertida para muitas pessoas (mas não para mim, preciso dizer).

Diante disso, acabamos entrando em uma situação contraditória. Esses títulos se tornam famosos porque são quase impossíveis de finalizar. Então, eles ganham engajamento por meio dos streamers e são eventualmente adquiridos por pessoas que não vão aproveitar o que eles podem oferecer. Em uma situação limite, isso não favorece em nada a experiência de jogar. Mas antes que você esbraveje contra mim alegando que é você quem escolhe o que quer comprar e (não) jogar, volto ao que disse no começo: eu entendo que os gostos não são universais e predeterminados e não vejo nada de errado em existir opção para todos, mas não são poucas as pessoas que correm atrás de determinados títulos só por causa da dificuldade elevada, algo que no final os impedirá de fazer valer o seu investimento.

Mais do que isso, penso que esse tipo de jogo não é o mais interessante para atrair e formar novos apaixonados pelos videogames. Quando criança, só terminei Contra e Life Force usando o bendito código Konami. E olha que esses jogos nem estavam figurando entre os mais difíceis que eu encontrava. Mas, por ter conseguido terminá-los, eles são uma lembrança bem mais forte e significativa do que, por exemplo, Battletoads e sua maldita fase da moto.



Formando caráter

O pai do Calvin (das tirinhas Calvin e Haroldo) sempre diz ao filho que as experiências difíceis e frustrantes formam o caráter. O Calvin não concorda com isso, assim como cada pessoa que perdeu alguns fios de cabelo segurando um controle também não. 

Videogame é uma forma de entretenimento e acredito que tudo o que impede, de forma deliberada, o desafio natural do jogo, é contraproducente. Não estou falando que devemos ter inimigos que não causam dano ou explicações detalhadas do que fazer a cada minuto; a questão é que existem formas de criar desafios interessantes e estimulantes sem massacrar os nervos do jogador. Quer uma dica? Deixe os games impossíveis para quem está atrás de views na Twitch. Dedique o seu tempo àquilo que é significativo e que te desafia sem querer te humilhar. Faz muito mais sentido.

Revisão: José Carlos Alves


Pesquisador nas áreas de estética e cibercultura com Mestrado em Cultura e Sociedade (UFMA) e Doutorado em Comunicação (UnB). Além de escrever sobre jogos, produz o Podcast Ficções e tem um blog sobre literatura, filosofia e cotidiano.
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