Três coisas que os filmes podem aprender com jogos de videogame

Estas são minhas sugestões, mas as ideias vêm de Fumito Ueda, Jenova Chen e Hideo Kojima.

em 26/03/2021



Se a história da arte fosse uma viagem ao redor do globo, toda a história dos videogames não passaria de um passeio até uma cidade próxima. Na verdade, só por volta da segunda metade da década de 1990 que a indústria dos jogos eletrônicos começou a amadurecer e ganhar espaço como uma forma mais respeitável de expressão artística.

Esse movimento, claro, começou com passos tímidos, e por meio de uma nítida inspiração em outras mídias artísticas, especialmente o Cinema. Tal caminho de inspiração (do cinema para os videogames) é comum até hoje, mesmo em produções independentes, como é o caso de The Witness (Multi), que chegou a exibir, dentro do próprio jogo, uma tela de cinema (capa desta matéria) com trecho de um filme que claramente inspirou esse game de puzzle: Nostalgia, de Andrei Tarkosvky.

Por outro lado, atualmente, esse caminho de inspiração também tem tomado a direção contrária. Para um exemplo no Cinema, Guillermo del Toro já mencionou os jogos Ico (PS2/PS3) e Shadow of the Colossus (PS2/PS3/PS4) como parte de sua influência artística de direção cinematográfica.

Imagem de Ico, versão remasterizada (PS3)

Apenas para citar alguns na década de 1990, jogos como Tomb Raider (Multi), Resident Evil (PS), Final Fantasy VII (PS/PC) e Metal Gear Solid (PS) foram títulos influentes do final da década que trouxeram uma forte adaptação de técnicas e conceitos cinematográficos.
“Supõe-se que o corpo humano seja 70% de água. Eu me considero 70% filme”. — Hideo Kojima

 

Metal Gear Solid

A inserção da “linguagem cinematográfica”, por assim dizer, em videogames foi tão forte que notáveis estúdios de cinema passaram a especializar parte de sua equipe em desenvolvimento de jogos. Esse foi o caso, por exemplo, da LucasArts, com aclamados graphic adventures como The Secret of Monkey Island (PC) e Sam & Max Hit the Road (PC), e o Studio Ghibli, com Ni no Kuni: Wrath of the White Witch (Switch).

Ni no Kuni: Wrath of the White Witch

Assim, hoje, após mais de duas décadas em que o cinema tem emprestado suas ideias ao mundo dos videogames, será que os filmes, por sua vez, têm algo a aprender com os jogos eletrônicos?

Respondo que sim, e as sugestões são minhas, mas as ideias são de Fumito Ueda, Jenova Chen e Hideo Kojima, diretores de respeitados e influentes jogos eletrônicos, como o já mencionado Ico, Journey (Multi) e os títulos da série Metal Gear Solid. Confira o que esses e outros jogos trazem de interessante para repensarmos algumas potencialidades pouco exploradas na indústria do cinema.

Histórias fragmentadas e sutis podem ser tão cativantes e impactantes quanto histórias claras e diretas

O cinema, sem dúvida, já deu vida a muitas obras com enredos mais interpretativos e referências sutis. Para citar alguns exemplos, podemos lembrar de vários longas-metragens de Andrei Tarkovsky, como Nostalgia (1983), e dos curtas-metragens da coletânea Sonhos (1990) de Akira Kurosawa.
"Existe um nível de realismo que você só pode alcançar através do imaginário". — Fumito Ueda

 

Cena de um dos curtas de Sonhos, de Akira Kurosawa

Mais recentemente, Mother (2017), de Darren Aronofsky, foi também uma amostra de como narrativas não-convencionais podem causar grande impacto nos espectadores, ainda que eles saiam das salas de cinema com mais perguntas do que respostas.

Contudo, filmes como esses estão longe de representarem a tendência da sétima arte. Pelo contrário, a grande maioria das produções cinematográficas dão referências muito claras aos espectadores, fornecem uma progressão previsível de roteiro, explicações diretas sobre o universo ficcional onde se situam os personagens e, quase sempre, uma narrativa linear dos acontecimentos.

É bem verdade que também há muitos jogos na indústria que seguem essa tendência, mas acredito que, em comparação com o Cinema, haja uma quantidade mais significativa de títulos populares que apostam em uma expressão artística livre da obrigação de explicar tão claramente o contexto em que se insere o protagonista da ficção.

Ao invés disso, muitos jogos focam-se principalmente na imersão e na sintonia entre o jogador e o protagonista em um mundo ou local, às vezes desconhecido para ambos. Esse é o caso, por exemplo, de Ico e dos títulos da série Dark Souls. Desse modo, incentivando o jogador à procura por respostas, ainda que nem sempre possam ser encontradas com clareza e, mesmo assim, às vezes forçando-o a tomar decisões em meio a incertezas.

Dark Souls III

Afinal, uma obra artística (nos cinemas ou nos videogames) não precisa entregar respostas, antes pode bastar fornecer um caminho interessante para procurá-las ou uma boa experiência dos problemas formulados em mundo ficcional.

Alguém poderia argumentar que um formato de “interpretação mais livre” de enredo seria mais facilmente aceito pelo público de videogames pelo fato de jogos contarem também com um apelo às mecânicas para chamar a atenção do público.

Isso é verdade. Contudo, é preciso lembrar que também há muitos títulos com mecânicas extremamente básicas e com pouco ou nenhum desafio  —  porém com grande apelo artístico e narrativo  —  que funcionam muito bem em enredos “mais interpretativos”.

São exemplos vários jogos da Thatgamecompany, como Abzu (Switch), e muitos jogos independentes, como Limbo (Switch) e Gris (Switch), que utilizam conceitos expressionistas e surrealistas, respectivamente, para dar vida a histórias mais lacunares e sutis.

Limbo
Gris

Assim, talvez o cinema tenha uma ou outra coisa a aprender com esses jogos que conseguem entregar, para um grande público, experiências incríveis e cativantes com histórias sutis, fragmentárias, metafóricas e lacunares.

Ideias e intenções podem ser compreendidas sem que estejam explícitas nas falas dos personagens

Geralmente relacionado ao assunto do tópico anterior (mas não necessariamente) está a quantidade de falas de um ou mais personagens em uma história.
“A linguagem engana muito. Em alguns idiomas, existe um vocabulário que não existe em outros idiomas. Isso muda totalmente a forma como as pessoas se sentem sobre as coisas”.  —  Jenova Chen
Sabidamente a sétima arte já possui um vasto legado de grandes filmes mudos, como O Encouraçado Potemki (1925) de Serguei Eisenstein e Tempos Modernos (1936) de Charlie Chaplin. Mas sinto que, com o passar do tempo, os gestos, sons e imagens passaram a ser subestimados quanto ao seu poder para, sozinhos, expressarem ideias e sentimentos, especialmente considerando os filmes de grande bilheteria.

Nesse sentido, quando assisti Dunkirk (2017), de Christopher Nolan, impressionou-me como o protagonista do filme, um jovem francês, conseguia, sem pronunciar uma só palavra, deixar claro ao espectador suas intenções e, ao mesmo tempo, passar-se por um soldado britânico — até mesmo fazendo amigos — em meio a um batalhão. Foi então que percebi que aquilo que me chamou a atenção em um filme era, na verdade, extremamente comum nos videogames.

Cena de Dunkirk, de Christopher Nolan

Jogos como Inside (Switch) são capazes de construir histórias muito boas sem nenhuma palavra, em um nível de excelência comparável a poucos curtas-metragens. Já em Half-Life 2 (Multi), o protagonista (Gordon Freeman) não pronuncia uma palavra sequer, mas insere-se facilmente entre os demais personagens falantes da trama.

Por sua vez, em The Last Guardian (PS4), também desenvolvido pelo Team Ico, não só o protagonista fala em uma língua incompreensível ao jogador como ele e o jogador estabelecem, ao longo da narrativa, uma relação muito especial com um animal fantástico, Trico, sem nenhuma intervenção de língua natural. Assim mesmo, é possível saber quando o animal está feliz, triste, com fome, ferido, solitário, desconfiado, com raiva e, acima de tudo, o quanto ele gosta ou não de você.

The Last Guardian

Por fim, Jenova Chen, em Journey, leva esse conceito a outro nível quando propõe um contato online entre jogadores sem que eles possam falar ou escrever.
“Projetar um jogo pode ser como um jardim japonês. Não é o que você coloca, mas o quanto você tira”.  — Jenova Chen 
A comunicação é toda por meio de sons musicais, movimentos e enigmáticos ideogramas. Entretanto, é incrível como a comunicação flui e os jogadores conseguem se conectar para ajudarem uns aos outros e passarem por aventuras incríveis sem trocarem uma palavra sequer. Além de que a própria narrativa não necessita também de nenhuma palavra e, no entanto, é indescritivelmente bela.

Journey

Talvez os filmes devessem aprender com esses e outros jogos como falar mais por meio de imagens e notas musicais. Não significa que devam voltar a uma tendência de cinema mudo, mas que possam valorizar mais os momentos de fala ao explorarem também outros recursos de expressão. Certamente filmes com pouquíssimas falas ou com falas em língua sem tradução também poderiam trazer experiências poderosas como aquelas dos jogos do Team Ico.

Filmes podem compartilhar a movimentação de câmera com seus espectadores sem que isso descaracterize a arte do cinema

Minha última sugestão, diferente das duas anteriores, nunca foi comum na história do cinema, e, de certa forma, pode soar um tanto quanto ousada, mas, ainda assim, acredito que se trate de um recurso que enriqueceria o futuro da sétima arte sem que venha a se confundir com os videogames.

Tradicionalmente, filmes, séries etc. colocam seu público em uma situação predominantemente passiva. Quando muito, o público é capaz de pausar e retroceder e avançar um filme, por fins narrativos. Esse é o caso, por exemplo, de Black Mirror: Bandersnatch (2018). No mais, os espectadores simplesmente assistem e reagem (com risos etc.) a uma sequência de filmagens milimetricamente planejada.

Por sua vez, jogos eletrônicos geralmente são definidos, entre outras coisas, pela relação interativa com seu público. Entretanto, muitos títulos passaram a, em alguns momentos, empregar “cinemáticas” (cutscenes), que nada mais são que “pequenos filmes” dentro dos jogos. Basicamente, cenas em que o diretor limita (total ou parcialmente) a interatividade com o jogador, aproximando-o de um espectador de cinema. Nesse aspecto, como notou Damien Mecheri, em The Works of Fumito Ueda,
“Em tomadas pré-calculadas (tanto em 2D como em 3D), os desafios permanecem semelhantes aos das artes cênicas, que se realizam em um palco fixo, e do filme, em que os ângulos de visão e a edição têm a palavra final sobre o que o público verá. Jogos que permitem uma certa liberdade nos movimentos da câmera, por outro lado, requerem um amplo planejamento  —  o trabalho visual deve ser perfeito para onde o jogador olha.”
Contudo, mesmo nesses momentos de cinemáticas, alguns jogos conseguem estabelecer interessantes recursos interativos que poderiam também ser mais explorados no cinema. Um deles é a possibilidade de girar ou mover a câmera durante a cinemática, ou seja, enquanto os personagens se movimentam e conversam.

Nas artes visuais, um conceito semelhante tem sido empregado, de modo a reconstruir pinturas em 3D. E esse tipo de controle de perspectiva visual tem sido aplicado, com alguma frequência, também em transmissões digitais de apresentações musicais, por meio de câmera 360º. Confira um pequeno exemplo:


Pense por um momento em novas possibilidades por meio desse tipo de câmera, bem como nas possibilidades do espectador poder ele próprio alternar câmeras durante uma narrativa em cinemática — como em reality shows ao estilo Big Brother.

Para dar um último exemplo peculiar em cinemáticas de jogos, e que acho particularmente interessante, lembro da possibilidade em Metal Gear Solid 3D: Snake Eater (3DS) — mas não exclusiva dessa versão do jogo — de alternar visão em terceira para primeira pessoa durante as cinemáticas. Essa estratégia foi empregada por Hideo Kojima para mostrar ao jogador o que está sendo alvo dos olhos do protagonista (Snake) durante as cutscenes.

Metal Gear Solid 3 (versão remasterizada de PS3)

Esses e outros tipos de interações durante um filme podem enriquecer a experiência com a interatividade do público (não só em usos maliciosos, como da cena acima) e, ainda assim, não se confundir com jogos eletrônicos, já que não estão introduzindo nenhum fator mecânico relevante para o curso da narrativa. Ou seja, não é possível controlar os personagens/atores em cena de nenhuma forma.

Por filmes mais sutis, imagéticos e interativos

Em síntese, este texto enfatiza três pontos muito presentes em videogames e que, no entanto, ainda podem ser mais aproveitados nos filmes. São eles:
  • Histórias fragmentadas e sutis;
  • Comunicar menos por língua natural e mais por imagens e trilha sonora;
  • Liberdade de câmera.
Acredito que haja mais pontos a se enfatizar, mas creio que aí já estejam bons exemplares de lições para os filmes. A indústria dos videogames deve muito à sétima arte, em termos de direção, artifícios técnicos, roteiro etc., mas é possível que, até o fim deste século, também o cinema tenha muito a agradecer aos diretores, designers e demais artistas por trás da estética dos jogos.

E você, o que acha da relação entre cinema e videogames? O que pensa sobre esses três pontos em que os filmes poderiam aprender com os jogos de videogame? E gostaria de acrescentar algum outro? Deixe seus comentários abaixo.

Revisão: Icaro Sousa
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Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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