Finalmente lançado no Ocidente em dezembro de 2020, embora originalmente publicado no Japão em 1990 e disponível temporariamente para Nintendo Switch só até 31 de março de 2021, Fire Emblem: Shadow Dragon and the Blade of Light, da Intelligent Systems em parceria com a Nintendo R&D1, encontra-se paradoxalmente tanto no passado de seu contexto cultural e de hardware — que justifica muitas de suas escolhas de design — quanto no futuro dos RPGs táticos (TRPGs) que ajudou a formular, mas que, em muitos aspectos, o superaram.
Esta análise atenta-se a essa dupla temporalidade do título em questão, mas prioriza a experiência atual de jogá-lo no Switch; afinal, é a plataforma em que está sendo disponibilizado. Como resultado, Fire Emblem: Shadow Dragon and the Blade of Light surge como uma recomendação fácil para poucos, mas difícil para os demais.
Estética e conceitos de design que resistiram a décadas de batalhas de turno
Seguramente, não se pode dizer que Fire Emblem: Shadow Dragon and the Blade of Light tenha um design de arte propriamente inovador. O design de cenário em tabuleiro contrastado com cenas de combate já esteve presente, por exemplo, em Famicom Wars, de 1988, também da Intelligent Systems, e, anos antes da época do desenvolvimento do primeiro Fire Emblem, séries como Dragon Quest e Final Fantasy já haviam popularizado, nos videogames e especialmente nos JRPGs, o estilo visual dos mangás.
Entretanto, o contraste de design entre tabuleiro e combate resistiu à prova do tempo, e continua a funcionar muito bem dentro e fora das séries Wars e Fire Emblem, fazendo com que essa escolha de design, em 1990, ainda tenha um sabor familiar ao paladar contemporâneo.
Além disso, diferentemente dos traços vívidos e descontraídos dos desenhos de Akira Toriyama para Dragon Quest, por exemplo, os artistas de Fire Emblem deram traços mais sérios aos personagens, às animações e aos cenários, mas sem que chegassem a ser sombrios como nos títulos da série Megami Tensei. Diferentes tentativas desse meio-termo entre o descontraído e o sombrio acompanharam, de alguma forma, quase todos os títulos posteriores de Fire Emblem e continuam funcionando mundo bem, ao menos para os fãs da série.
Desse modo, ao contrário da estranheza que possa ter um fã do design mais descolado da série Mega Man X ao ser apresentado aos traços mais infantis da série clássica Mega Man, aqueles que apreciaram o estilo dos mais recentes jogos de Fire Emblem não estranharão o visual do primeiro título da série.
As ressalvas da familiaridade estética neste Fire Emblem ficam para alguns problemas técnicos, um desses que pode confundir o jogador em suas táticas: ao deixar uma unidade em certas superfícies, como de água ou ponte, ela “se transforma” em terra (veja na imagem abaixo). Além disso, óbvio, pode incomodar a alguns o downgrade dos gráficos, que podem ser compreendidos pelas limitações de seu contexto tanto quanto o são no caso de jogos indie com fortes restrições financeiras.
Assim, considerados nesse contexto, os gráficos chegam a ser audaciosos para o Famicom (versão japonesa do NES). Convém lembrar que jogos táticos envolvem muitas variáveis associadas ao cenário, o que torna desafiador fazer esse título funcionar em um console 8-bits. Ademais, nas cenas de combate, o jogo traz boas animações minimalistas, considerando as limitações do Famicom e ainda sob a ressalva de tais animações ocorrerem com um fundo preto.
A trilha sonora parece estar em uma situação semelhante. Novamente, a despeito das limitações sonoras do hardware do Famicom, mas também por causa dessas mesmas limitações, impressiona a variedade e a criatividade de algumas das composições de Yuka Tsujiyoko e Hirokazu Tanaka. Não é de se espantar que algumas delas, como mais obviamente a música de abertura do jogo, que se tornou o hino da franquia, tenham recebido novas versões em títulos posteriores, procurando valorizar sua qualidade melódica e rítmica com artifícios técnicos superiores.
Embora não tão icônicas quanto algumas músicas de outros títulos importantes do mesmo console, os fãs da série Fire Emblem se sentirão em casa com as composições desse clássico, especialmente aqueles que preferem os elementos de música clássica aos elementos de rock nos últimos títulos da série.No mais, a repetição das mesmas linhas melódicas nos mesmos timbres sintéticos conhecidos do NES pode se tornar cansativa em partidas que costumam ser longas, o que se torna um agravante quando comparada à experiência que se pode ter das trilhas sonoras de jogos clássicos de jogabilidade mais dinâmica, como Mega Man e Super Mario Bros. Esse fator, entre outros que serão discutidos a seguir, faz o primeiro Fire Emblem da Intelligent Systems (e muitos outros jogos de seu gênero) tornar-se mais maçante ao público moderno.
Partidas lentas, desafiadoras e muito frustrantes
Em síntese, pode-se dizer que a jogabilidade do primeiro Fire Emblem resume-se à feliz ideia de Shouzou Kaga de entrelaçar as mecânicas de estratégia tática com elementos de JRPG, mas, infelizmente, em uma execução com frequentes desafios que, ainda quando justos, tornam-se maçantes e muito frustrantes atualmente.
Quanto às mecânicas táticas, o jogo possui — como é comum de se esperar nos TRPGs de hoje — movimentação e combate por turnos em um campo de batalha no formato de um tabuleiro, com variações quantitativas e/ou qualitativas do movimento das unidades quanto a estarem a pé ou sobre alguma montaria (cavalo ou pégaso) e em algum terreno (floresta, água, areia etc.).
As unidades possuem armas e magias com vantagens e desvantagens em relação a oponentes específicos; o arco, por exemplo, dá mais dano em um inimigo que esteja montado em um Pégaso, enquanto o martelo causa maior estrago em cavaleiros, que possuem alta defesa, ataque e velocidade.
Quanto ao level design dos capítulos do jogo, ele possui uma variedade razoável, mas incomparável ao de alguns outros títulos da série. Apesar disso, há mapas diversificados, alguns com florestas densas e/ou muitas montanhas (como o do capítulo três), arquipélagos com pontes (como no capítulo nove) e estruturas mais fechadas, cercadas por muros, a exemplo do capítulo seis de mesmo nome do título do jogo: “Fire Emblem”. Alguns desses mapas, especialmente os mais fechados, podem ser bastante desafiadores, principalmente ao se levar em conta a inovação nesse game — para sua época — de permadeath, ou seja, morte permanente dos personagens.
Para quem não conhece o permadeath na franquia Fire Emblem, é como imaginar um campeonato de xadrez em que a cada nova partida os jogadores não podem utilizar as peças perdidas na partida anterior. Porém, analogamente, e tal como no xadrez não se pode perder o rei, em Fire Emblem não se pode perder Marth, o protagonista do game, ou você perderá o jogo.
A execução do permadeath neste jogo tem alguns problemas, o que o torna um tanto frustrante. Não há possibilidade de “modo fácil” ou uma habilidade de retroceder turnos caso o jogador se arrependa de uma jogada — como no Fire Emblem: Three Houses (Switch) —, ou no mínimo uma forma rápida e prática de retornar a um save point no meio da partida.
Esse defeito é ainda agravado por mais dois fatores: a impossibilidade de ter uma estimativa do resultado de um ataque (quanto de HP aproximadamente será tirado do oponente, chance de crítico etc.); e a lentidão das partidas, o que resulta em desânimo para recomeçá-las do zero após ter perdido unidades importantes do exército.
Essa lentidão não se dá só pela extensão do mapa e pelo processo mental para as táticas, mas também pelos controles não serem muito responsivos, pelas jogadas do time inimigo (o computador) poderem levar bastante tempo e pela impossibilidade de pular as cenas de combate, sendo possível apenas cortar as animações e acelerar um pouco o jogo.
Resta ainda falar das mecânicas de RPG. Elas envolvem, entre outras coisas, o clássico sistema de experiência pós-combate, onde o nível de um personagem pode subir e, junto dele, alguns de seus atributos, como força e agilidade. Ademais, o jogo conta com um conjunto de classes únicas para cada personagem, algumas das quais com possibilidade de promoção após um certo nível; por exemplo, a promoção de mercenários para heróis e de cavaleiros para paladinos.
Outra influência notável do gênero é o fato das armas e magias dos personagens terem um limite de uso. Uma vez atingido esse limite, elas quebram. É possível comprar armas novas em uma Armory ou guardar itens em um armazém, tipos de construções presentes em alguns mapas, além de poder obter outras recompensas e dicas de gameplay ao conversar com aldeões.
Esse tipo de mecânica, apesar de parcialmente presente mesmo em títulos mais recentes, como em Fire Emblem: Awakening (3DS), de 2012, aqui pode significar um grande empecilho para a acessibilidade do jogo, já que, diferentemente do título de 3DS, nem sempre será fácil comprar um equipamento ou guardá-lo. E não há em Fire Emblem: Shadow Dragon and the Blade of Light a possibilidade de, entre partidas, gerenciar equipamentos e itens em uma base de seu exército, ou algo parecido, tal como em Fire Emblem Fates (3DS), de 2015, e seu sucessor para Switch.
Personagens fracos em uma narrativa simples e previsível
O palco para Fire Emblem: Shadow Dragon and the Blade of Light é o continente de Archanea, mesmo continente que, no futuro, com o nome de Ylisse, servirá de palco para Fire Emblem: Awakenings. Muito tempo antes da trama do primeiro título da série, Archanea havia sido invadida pelo Império Dolhr, liderado por um dragão chamado Medeus.
Para restaurar o reino, um jovem chamado Anri de Altea derrotou o dragão com uma espada de luz, Falchion. Cem anos depois, Medeus é ressuscitado por uma magia de Gharnef e os dois formam uma aliança para dominar o mundo. O rei de Altea na ocasião parte para enfrentá-los com a Falchion e deixa para trás seus filhos Marth e Elice no Reino de Gra. O rei é morto, tendo sua espada roubada. Nosso protagonista consegue escapar e refugia-se em Talys, uma nação insular que, tempos depois, começa a ser invadida por piratas. Só então o jogo começa.
Após derrotar os piratas, o jogador estará pronto — segundo o rei local (muito otimista) — para enfrentar Dolhr, então Marth parte nesta empreitada épica, com um pequeno exército e Caeda, filha do rei. No decorrer da aventura, encontraremos outros personagens que podem se juntar ao nosso exército, alguns dos quais com diálogos que enriquecem um pouco a trama, mas sem muito destaque, e passaremos por muitos desafios e algumas descobertas até Marth conseguir reconquistar o trono do qual é herdeiro; de preferência, ao lado de Caeda, caso consigamos mantê-la viva até lá.
Sem entrar em maiores spoilers, é preciso dizer que, quando comparada à dos Fire Emblem modernos, a história de Shadow Dragon and the Blade of Light é, de longe, sua maior fraqueza. A narrativa é extremamente linear, os chefes possuem pouca ou nenhuma personalidade, alguns objetivos são justificados de modo muito raso, a trama é recheada de clichês rápidos e previsíveis e até o personagem principal, Marth, que pode soar carismático e nostálgico como lutador da série Super Smash Bros., tem personalidade, background e papel na história do primeiro Fire Emblem decepcionantes para jogadores que vivenciaram enredos bem elaborados em jogos posteriores da franquia.
Esse contraste é especialmente grave no momento atual da série, em que uma das principais características conhecidas e esperadas em um Fire Emblem é uma história bem escrita. E mesmo em sua época, vale lembrar, embora histórias simples como a do primeiro Fire Emblem fossem comuns, já começavam a surgir alguns exemplares de JRPGs com bons personagens e/ou histórias respeitáveis, como Megami Tensei II (Famicom) de 1990, e Final Fantasy IV (SNES) de 1991.
Uma recomendação limitada
Fire Emblem: Shadow Dragon and the Blade of Light é altamente recomendável para entusiastas da história dos gêneros de RPG e/ou de estratégia e também para fãs mais assíduos da série, mas absolutamente não aparece como uma boa entrada para novatos em Fire Emblem ou tampouco para novatos nos jogos táticos em geral.
Nesses últimos casos, fica muito difícil para esse título, na biblioteca do Switch, competir com jogos como Fire Emblem: Three Houses ou mesmo Wargroove, ambos de 2019. Mas seja qual for sua decisão quanto a adquiri-lo, não esqueça que ele estará disponível de forma limitada na Nintendo eShop somente até 31 de março.
Apesar de alguns defeitos que possam ser percebidos já no desenvolvimento de 1990, o que joga a favor do lançamento de Fire Emblem: Shadow Dragon and the Blade of Light no Nintendo Switch é sua fidelidade ao título original, de profunda influência no gênero TRPG, e, em especial, na sua série que já comemora seus 30 anos.
Por outro lado, o que joga contra esse lançamento também é sua fidelidade. Não me entenda mal, o primeiro Fire Emblem continua tendo muitas características que deixarão alguns fãs da série bem satisfeitos, mas sua espada de luz já não brilha como há 30 anos, e muitos se questionarão se vale a pena buscá-la para derrotar o dragão sombrio.
Prós:
- Ótimas composições musicais;
- Valor histórico para o gênero TRPG;
- Design clássico, nostálgico e ainda bem funcional;
- Muitas mecânicas que envelheceram bem e serão familiares aos fãs da série.
Contras:
- Problema com o gráfico dos tipos de terreno quando há unidades em cima;
- Partidas longas e lentas;
- Enredo fraco como um todo;
- Progressão cansativa, pouco instigante, um tanto repetitiva e frustrante;
- Introdução da jogabilidade muito pouco convidativa para novatos;
- Disponível para venda apenas até 31 de março de 2021.
Fire Emblem: Shadow Dragon and the Blade of Light - NES/Switch - Nota: 6.0Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: Davi Sousa
Análise produzida com cópia digital adquirida pelo próprio redator