Antes de uma asa negra única abrindo-se por trás de seu ombro direito, antes de longos cabelos prateados sombreando seu traje negro, antes mesmo da longuíssima e esguia Masamune (de cerca de 2 metros) delicadamente empunhada por sua mão esquerda, há algo nesse personagem que o revela antes que ele apareça, mesmo após mais de 20 anos desde sua primeira aparição: o tema musical “One Winged Angel” (Anjo de uma asa).
Masahiro Sakurai, criador e diretor da série Super Smash Bros., tinha pleno conhecimento dessa identidade musical ao apresentar o personagem pela ordem inversa dos elementos descritos acima (música, espada, roupa, cabelo e asa). Se você, leitor, assistiu ao anúncio do novo integrante do panteão de Super Smash Bros. Ultimate no The Game Awards 2020 (dia 10 de dezembro) e descobriu Sephiroth antes que sequer pudesse identificar alguma forma humana no horizonte, então a estratégia de Sakurai funcionou tão bem quanto à de Nobuo Uematsu, em 1997, de dedicar essa composição emblemática única e exclusivamente à cena final de Final Fantasy VII, quando da batalha final com Sephiroth, e eternizá-la à imagem e semelhança do antagonista de Cloud Strife. Nada mais justo, portanto, que este texto comece por abordá-la.
O anjo de uma asa
One Winged Angel é, sem dúvida, uma das principais composições de Nobuo Uematsu, o que não é pouca coisa, pois estamos falando de um dos maiores nomes da música dos jogos, senão mesmo o maior deles. Nobuo Uematsu foi responsável por elevar a composição musical na indústria dos jogos a outro patamar, o patamar de levar as músicas dos videogames para fora deles, executando-as publicamente, pela primeira vez, com orquestras renomadas e disponibilizando-as em álbuns de música (algo que se tornaria comum na indústria, com o passar do tempo).
Primeiros compassos de One Winged Angel (arranjo para piano de Shiro Hamaguchi)
Em Final Fantasy VI, de 1994, Uematsu conseguiu transcender as limitações do subsistema de áudio do SNES (o chip S-SMP), de modo memorável e completamente inesperado à época, transformando os conhecidos sons do console de 16-bits em uma orquestra capaz de expressar graça, ternura, fúria e desespero com notáveis elementos da música clássica e barroca em composições como “Aria di Mezzo Carattere” e “Dancing Mad”. Várias de suas referências à música erudita orquestral retornariam em Final Fantasy VII, mas agora, no PS1, contando com um subsistema de áudio muito mais avançado e, além disso, fortes inspirações neoclássicas, cinematográficas e de rock. Provavelmente o fruto mais saboroso dessa excêntrica cultura de técnicas é One Winged Angel. A formulação dessa composição foi explicada pelo compositor em uma entrevista cedida à Polygon, em 2017.
Sephiroth destro de Yoshitaka Amano
Assim como foi a primeira vez que o artista da série Final Fantasy, Yoshitaka Amano, pôde ver contrapartes de seus desenhos com gráficos 3D, também pela primeira vez Nobuo Uematsu pôde utilizar voz humana e timbres de instrumentos de orquestra, e exibiu, como em nenhuma composição sua até então, grande diversidade sonora: One Winged Angel possui coro, cordas, instrumentos de sopro, xilofone, tímpano e mais.
Em sintonia com essa variedade de timbres, não são raros os momentos em que o tema musical e o ritmo mudam subitamente, e a harmonia varie tanto ou mais que os instrumentos utilizados, ainda que haja momentos icônicos de repetição.
As peças desse puzzle musical, com relação às inspirações mais gerais já citadas, são várias: Carmina Burana (de Carl Orff), Purple Hazer (de Jimi Hendrix), a trilha sonora do filme Psicose (de Alfred Hitchcock) e A Sagração da Primavera (de Igor Stravinsky). O resultado é impressionante. Impressionante não só pelo que a música foi em Final Fantasy VII, mas por quão memorável tornou-se mesmo décadas depois de sua execução nesse célebre RPG da Square Enix. Abaixo, uma compilação de todas as versões oficiais de One Winged Angel até hoje (inclusive a utilizada em seu anúncio para Super Smash Bros. Ultimate, que é a mesma do filme Final Fantasy VII: Advent Children):
Mas, se por um lado, no anúncio de Smash, o tema musical antecedeu o personagem; por outro lado, na série Final Fantasy, o personagem antecedeu seu tema. Muito antes de qualquer vinculação com One Winged Angel, em Final Fantasy VII, ouve-se falar de Sephiroth como um poderoso SOLDIER, unidade da Elite Soldiers, uma guarda de elite da Companhia de Energia Elétrica Shinra.
O poder militar dessa companhia, combinado com seu monopólio comercial da energia Mako — a forma líquida da energia espiritual do planeta (Lifestream) —, dá à Shinra uma vasta influência mundial em assuntos políticos, econômicos, sociais, de infraestrutura e de defesa. Em particular os membros da Elite Soldiers são supersoldados, com força e agilidade sobre-humanas. Muito mais fortes que as unidades de outros grupos militares ligados à companhia, como as tropas de infantaria e os Turks, a Shinra usa SOLDIERs para missões especiais que requerem maior uso de força.
Jenova em Final Fantasy VII: Crisis Core
Depois de ser um dos heróis de guerra do programa de controle mundial da Shinra, Sephiroth enlouquece ao descobrir, no vilarejo de Nibelheim, suas verdadeiras origens, que remontam a um projeto secreto de pesquisa daquela empresa sobre uma entidade extraterrestre, Jenova, e da possibilidade de infundir suas células em outras criaturas com a intenção de criar um Cetra, ser ancestral capaz de se comunicar com o planeta relacionado à Jenova.
Os experimentos a respeito, porém, falharam, originando criaturas monstruosas, com exceção, pela primeira vez, de Sephiroth, que manteve sua forma humana, mas não obteve os poderes esperados da antiga raça Cetra, embora tenha se tornado extremamente poderoso e, por isso, útil para fins militares. Dessa forma, a legítima mãe (Lucrécia) de Sephiroth nunca pôde vê-lo desde o nascimento e, em sua fecundação, foram implementadas células de Jenova.
“Mãe, vamos recuperar o planeta juntos. Eu... tive uma epifania... Vamos para a terra prometida, mãe. [...] Mãe, eles estão aqui de novo. Você deveria ter governado este planeta. Você era mais forte, mais inteligente. Mas então eles vieram. Aqueles idiotas inferiores. Eles vieram e tiraram este planeta de você. Mas não fique triste, mãe. Eu estou com você agora.”
— Sephiroth conversa com sua "mãe" Jenova durante o incidente de Nibelheim.
Sephiroth, desde então, consumido por um ódio de tudo e de todos, por terem mentido sobre suas origens e usado ele por toda a vida para fins militares, decide destruir todo o mundo tal como é conhecido. Esse antagonista, porém, apenas passou a exercer um papel significativo na história de Final Fantasy VII quando é descoberto que ele ainda está vivo, na ocasião em que os protagonistas julgam que ele tenha matado o presidente da Shinra (na imagem abaixo), isso ainda na primeira metade do primeiro CD (o jogo foi dividido em três CDs na versão de PS1).
Em suma, o papel de Sephiroth em Final Fantasy VII resume-se ao de um arqui-inimigo de Cloud Strife, protagonista do jogo, e mais precisamente de um símbolo do conturbado passado de Cloud. Desse modo, quase todo o Final Fantasy VII gira em torno dos problemas de motivação, memória e identidade de Cloud, e Sephiroth deixou sua marca em todos esses aspectos do passado do protagonista.
Rascunho inicial dos personagens de Final Fantasy VII
Cloud Strife tem um passado misterioso e conturbado, até para ele mesmo, e o jogador, controlando-o, vai, junto com o personagem, montando as peças desse quebra-cabeças. No início, o protagonista é reconhecido apenas como um mercenário ex-SOLDIER contratado por um insurgente grupo ecoterrorista chamado AVALANCHE, que procura minimizar os estragos ao planeta ocasionados pela exploração da energia Mako. O jogo começa justamente em uma das missões desse grupo, onde infiltram-se em um dos setores da usina da Shinra. Dentro da AVALANCHE, vale lembrar, uma das integrantes, Tifa, apresenta-se como uma amiga de infância do protagonista.
Pouco tempo após a cena da morte do presidente da Shinra, Cloud conta aos seus colegas da AVALANCHE um pouco sobre como seu passado liga-se a Sephiroth (ver imagem abaixo).
Em síntese, Cloud teria saído de Nibelheim, sua cidade natal (também de Tifa) para se tornar um SOLDIER, inspirado por Sephiroth. Em uma missão junto de seu ídolo, esteve no momento em que Sephiroth enlouqueceu e fez de seu primeiro alvo Nibelheim. Momento esse marcado por uma das cinemáticas mais memoráveis do antagonista de Cloud. Ainda que esse trecho remeta a um dos momentos mais importantes da história de Final Fantasy VII, caso jogue-o, esteja certo de que, no decorrer do jogo, terá muitas surpresas e verá que as coisas não se deram bem da maneira relatada por Cloud.
Enfrentando o passado
“Você nunca vai deixar o seu passado...” — Sephiroth (Kingdom Hearts II, Square Enix)
Em um flashback das memórias de Cloud Strife, por um brevíssimo período de tempo, Sephiroth faz parte da party do jogador, ao lado de Cloud, momento em que se pode ver as impressionantes habilidades do antagonista, com altíssimo dano tanto mágico quanto físico, além de sua grande velocidade de ação (rapidez de carregamento da barra de ATB).
Mais à frente, exatamente no final da primeira parte do jogo (CD1), como já bem difundido na mídia, o vilão reaparecerá em uma das cenas mais marcantes da série Final Fantasy, mas não convém expor demais esse spoiler, já que, para quem queira jogar e não tenha acompanhado muitas coisas da mídia a respeito da série, pode ainda ser uma boa surpresa.
Por outro lado, felizmente ou infelizmente, não pode ficar de fora um comentário ao final do jogo (CD3), parte quase toda dedicada à dungeon e à batalha relacionadas a Sephiroth. No derradeiro combate, o jogador enfrentará Sephiroth em uma segunda versão, Safer∙Sephiroth. Uma discreta alusão dessa forma “monstruosa” de Sephiroth foi feita, mais tarde, por asas invertidas em sua aparição (no design da imagem abaixo) como chefe secreto — bastante desafiador — em Kingdom Hearts II (PS2), de 2005.
Safer∙Sephiroth possui um altíssimo número de HP (55100-400000), altíssima defesa (100-260) e defesa mágica (180-308), afinidade máxima com praticamente todos os elementos, e magias poderosas de debuff e de dano, com destaque para a famosa Super Nova. Abaixo você pode conferir um vídeo com todas as versões até agora da Super Nova, desde a original até sua recente versão em Super Smash Bros. Ultimate (além do vídeo de anúncio de Sephiroth divulgado no The Game Awards 2020, vale a pena ver de novo):
Além do jogo original, outras inspirações (visuais e mecânicas) na adaptação do antagonista de Cloud para Super Smash Bros. Ultimate, como comentou Sakurai na apresentação oficial do personagem, vieram do popular filme Final Fantasy VII: Advent Children, de 2005. Uma das cenas mais icônicas do filme ilustram a capa desta matéria e foi parodiada por Sakurai no anúncio de Sephiroth.
Um dos maiores vilões da história dos jogos?
No mesmo vídeo de apresentação de Sephiroth, Sakurai começa por apresentar esse personagem como um dos mais famosos vilões no universo dos videogames, excluindo Bowser. Quanto à popularidade, não deve pairar a menor dúvida. Inclusive é provável que, depois de Bowser, seja, atualmente, o vilão mais conhecido em Super Smash Bros., apesar da notável popularidade também de Mewtwo, de Pokémon, e Ganondorf, de The Legend of Zelda: Ocarina of Time.
Mas é importante salientar, como uma conclusão crítica a respeito do personagem, e como o fizeram alguns redatores da Jeuxvideo.com, em uma matéria recente sobre Sephiroth, que a popularidade desse vilão não se deve somente aos méritos de sua criação e execução — que não faltam —, mas também, em grande parte, ao poderoso marketing na época de Final Fantasy VII. Convém recordar que esse título clássico da Square Enix ainda é um dos jogos mais caros de todos os tempos, mas, segundo um levantamento da Eurogamer de 2014, a grande maior parte do custo foi direcionada ao marketing, especialmente no Ocidente.
Os redatores da revista francesa, a título de comparação, destacam — com razão — que, enquanto Sephiroth apresenta muitos traços clichês de animes de estilo shonen, Kefka Palazzo, por exemplo, em Final Fantasy VI (SNES), de 1994, possuía um visual muito mais inovador (reimaginando uma estética barroca e rococó) e sua personalidade psicótica, cômica, imprevisível e quase onipresente na narrativa teria, até hoje, raros paralelos na indústria dos jogos.
Eu compararia a personalidade de Kefka apenas com a de Joker da série Batman: Arkham e a de GLaDOS da série Portal, ambas séries muito posteriores ao Final Fantasy VI, e acrescentaria que a atuação do vilão de Final Fantasy VI era acompanhada por uma trilha sonora talvez tão boa quanto One Winged Angel. Será que um dia os fãs de Final Fantasy poderão vê-lo nessa amada série de luta da Nintendo? E que outro personagem de Final Fantasy você acharia uma boa adição na lista dos lutadores de Super Smash Bros.? Está satisfeito com esse novo personagem de DLC de Super Smash Bros. Ultimate que acompanha seu cenário próprio e parte de sua trilha sonora? De minha parte, embora não estivesse entre os personagens que eu aguardasse, achei uma ótima adição em um anúncio fantástico! Deixe suas impressões, críticas e reflexões nos comentários.
Revisão: Vladimir Machado
Vítor M. Costa
Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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