Análise: Cadence of Hyrule (Switch) é o singular e harmonioso dueto entre duas virtuosas franquias

Com o lançamento de uma atualização surpresa seis meses depois do lançamento do game original, chegou a hora da nossa análise que tardou, mas finalmente chegou.

em 22/12/2019
Ser virtuoso é geralmente contar com uma aptidão natural para a música, da teoria à prática. The Legend of Zelda é, certamente, uma franquia que pode ser classificada assim. Não somente responsável por brindar o jogador com várias das mais icônicas trilhas sonoras da história dos games, a série constantemente as utiliza como elementos-chave da própria campanha do jogo.


O título que inaugurou essa tendência foi The Legend of Zelda: Link’s Awakening (GB), que introduziu os Instruments of Sirens como peças importantes na concepção de sua história. Esse foi o primeiro passo de uma grande jornada que pegou embalo de vez com The Legend of Zelda: Ocarina of Time (N64), que não apenas é um ótimo game, mas também foi responsável por revolucionar a mídia videogame como um meio de contar verdadeiras narrativas multiformes elaboradas, com a música, inclusive, no cerne do gameplay por causa da dita Ocarina, cujas notas musicais eram emitidas de acordo com os botões pressionados pelo jogador.



Essa relação íntima com a música foi se repetindo nas seguintes iterações da série, como em The Wind Waker, que permite que Link reja os ventos com uma batuta de maneira similar a um maestro com uma orquestra. Twilight Princess (Wii/GC), Spirit Tracks (DS) e Skyward Sword (Wii) introduziram elementos musicais na própria narrativa de forma parecida.

Do outro lado, Crypt of the NecroDancer (Multi) é um badalado jogo independente desenvolvido pelo estúdio canadense Brace Yourself Games. Nele, o jogador controla Cadence, uma garota enfeitiçada por uma poderosa entidade, o NecroDancer. A maldição rogada sobre ela é responsável por condicionar as batidas de seu coração à percussão das músicas que o próprio feiticeiro rege. Como se não bastasse, a moça foi feita prisioneira em uma cripta e precisa desbravar os vários andares do calabouço onde está cativa.



Na prática, a jogabilidade se dá como um roguelike, com níveis gerados procedimentalmente e estrutura de repetição, no sentido de que é necessário percorrer a mesma fase várias vezes até finalmente superá-la, sendo que as primeiras tentativas acabam servindo como um meio de evoluir a personagem. A musicalidade é aplicada no gameplay como um jogo rítmico, e os movimentos realizados pelo jogador precisam ser sincronizados de acordo com a música rodando e os indicadores de compasso na tela.

Tendo em vista as pontuais semelhanças entre as duas IPs, a Brace Yourself decidiu ir atrás da Nintendo para a produção de um DLC exclusivo para Crypt com a série Zelda como tema. Mais do que a simples autorização de utilização da franquia, eles receberam também a oportunidade de produzir um título próprio.



Cadence of Hyrule: Crypt of the NecroDancer featuring The Legend of Zelda (Switch) é um verdadeiro crossover no sentido clássico da palavra. Nele, Cadence é misteriosamente transportada para Hyrule. A região mais uma vez está em perigo por conta da presença aterradora de um novo vilão de intenções escusas: Octavo. Chegando nesse mundo desconhecido, recebemos a oportunidade de escolher entre Link e Zelda como nossos aliados e, a partir daí, o mapa torna-se livre para a exploração.

Sob tal perspectiva, a impressão transmitida por essa Hyrule é muito similar à do primeiro game da série, visto que somos literalmente deixados a esmo em um mundo desconhecido e precisamos explorá-lo para entender seu funcionamento. É aqui que a qualidade de geração de níveis do Crypt of the NecroDancer começa a ser colocada em prática.



Embora dividido por seções da mesma forma que Zeldas mais antigos em 2D, como A Link to the Past (SNES) e a dobradinha Oracles (GBC), nota-se que Cadence of Hyrule não conta com um mapa fixo. Isto é, as seções individuais foram planejadas pelos desenvolvedores e estão no código do jogo, mas a maneira como elas se configuram é diferente a cada novo save. O jogador pode salvar, sair e voltar, que a Hyrule estará igual naquela campanha específica, mas ele irá se deparar com um mundo completamente novo caso decida começar outra.

Pois bem, o objetivo ainda é o central de qualquer título da série: desbrave o reino atrás dos templos. Neles, encontraremos equipamentos que nos ajudarão em nossa jornada e derrotaremos chefões que renderão instrumentos musicais de importância simbólica, que servirão para abrir o nosso caminho até o chefão final.

A principal diferença das dungeons tradicionais para as de Cadence of Hyrule é que, tal como Crypt of the Necrodancer, precisamos percorrer os andares gerados proceduralmente até nos depararmos com os aposentos do boss. Mesmo assim, houve alguma preocupação interessante em inserir vários dos elementos que fazem Zelda ser a série que é, como é o caso de certos puzzles que podem ser solucionados com a ajuda de equipamentos corretos, sub-chefes que rendem recompensas e a famigerada boss key, que abre a grande porta que nos separa do chefão do templo.

O próprio arsenal com o qual nos acostumamos nos The Legend of Zelda também fez muito bem para o gameplay de Crypt of the Necrodancer, trazendo mais variedade para o sistema de combate. Independentemente, é importante que o jogador aprenda a ler os inimigos que enfrenta, já que saber os padrões de ataque dos oponentes é a chave para se movimentar dentro do compasso da música com o objetivo de derrotá-los. Isso fica mais divertido quando lembramos que cada personagem tem suas próprias habilidades e estilos próprios de jogo, trazendo maior diversidade nesse aspecto.



Até aqui, tudo é muito divertido e está correndo sonoramente bem. Essa melodia começa a desafinar, contudo, no instante em que percebemos que o modo história principal é absurdamente curto, principalmente perto do fator replay virtualmente infinito do Crypt of the NecroDancer original. É claro que, encerrada uma campanha, sempre é possível começar um novo save, pois com ele vem uma Hyrule cujas seções estão completamente reorganizadas, mas a existência de uma narrativa fechada acaba condicionando o jogador sempre para o sentido de coletar os instrumentos dos bosses para enfim enfrentarmos mais uma vez o chefão final de tudo.

Vendo o empecilho, a Brace Yourself Games implementou uma atualização gratuita com algumas novidades que trouxeram um novo fôlego para fazer com que o game dure. Uma delas é uma nova campanha em que o jogador passa a controlar Octavo e, assim, conhecer um pouco mais da história sob seu ponto de vista. O problema é que essa expansão não traz lá muita novidade. É o mesmo jogo com uma nova Hyrule gerada pelo mesmo sistema e enfrentando os mesmos chefes (salvo uma exceção no final).



Também foi implementado o chamado Dungeon Mode, que consiste em uma modalidade muito mais próxima do Crypt of the NecroDancer original no sentido de simplesmente se aventurar por andares de um calabouço — sempre gerado aleatoriamente — até chegar nas batalhas contra os chefes (os cinco de sempre, para variar).

O principal problema de Cadence of Hyrule, portanto, é que, apesar de contar com uma jogabilidade variada por parte das ações que um personagem pode realizar, o próprio game carece de material que faça jus a tais possibilidades, mesmo que o sistema possa gerar mapas das dungeons de forma praticamente infinita. No fim das contas, o Dungeon Mode não passa de um boss rush glorificado.



Apesar desse revés, é inegável que Cadence of Hyrule se trata de um produto de qualidade. Ele pode ser um pouco humilde (o que, diante de tantas produções espetaculosas que não entregam um terço do prometido, está longe de ser um defeito), mas ainda tem muita qualidade técnica.

Isso é perceptível, como era de se esperar, na parte da trilha sonora. Ela traz novas e belíssimas rendições de temas clássicos da franquia em estilo chip-tune com uma roupagem moderninha. Destaque para a música do Overworld, cuja melodia é uma espécie de remix de vários outros temas icônicos da franquia, como o do Hyrule Field, de Ocarina of Time; do Great Sea, de Wind Waker; de Tal Tal Heights, do Link’s Awakening; e do próprio tema da série, presente desde o seu título original de 1986.



O aspecto visual também deu um verdadeiro salto se comparado a Crypt of the NecroDancer. Os sprites são vívidos, coloridos e cheios de personalidade. Os gráficos realizaram a façanha de conseguir trazer de volta o sentimento de jogos clássicos do SNES, do GBC e do GBA, mas sem se apegar demais e abrir mão de uma roupagem moderna que o tornasse único.

Cadence of Hyrule: Crypt of the NecroDancer featuring The Legend of Zelda é um crossover interessante. Uma eventual união das duas séries era algo impensável, visto que uma é seguramente uma das franquias mais poderosas dos games e a outra não passa de um indie que conseguiu ostentar relativo sucesso. Na prática, contudo, parece até que as duas nasceram uma para a outra, dada a perfeita naturalidade com que se relacionaram em um produto virtuoso e harmonioso. É uma pena que, utilizando terminologia da indústria fonográfica, o que poderia ter a duração de um álbum conceitual completo ficou restrito apenas a um extended play.

Prós 

  • É como se as duas séries tivessem nascido uma para a outra;
  • Mescla com perfeição os elementos de Zelda com a jogabilidade ritmada de NecroDancer;
  • Visual colorido, vívido e cheios de personalidade;
  • Sacada muito interessante de uma Hyrule gerada proceduralmente;
  • Resgata o tom de um Zelda clássico em uma roupagem moderna.

Contras

  • Campanha muito curta;
  • Poucas opções além dos modos de história.
Cadence of Hyrule — Switch — Nota: 8.5
Revisão: Davi Sousa
Análise produzida com cópia digital adquirida pelo próprio redator

É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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