Análise: Return of the Obra Dinn (Switch) — Para os amantes das grandes histórias de detetives

Um jogo de suspense e investigação que exige muita perspicácia e atenção aos detalhes.

em 01/11/2019

Return of the Obra Dinn é um jogo desenvolvido por Lucas Pope e publicado pela 3909 LLC. Trazendo muito da visão de arte do seu criador, o game é intrigante e desafiador, lembrando o contexto de grandes obras de investigação, como os livros de Agatha Christie e Arthur Conan Doyle. Mas, da mesma maneira que Poirot e Sherlock Holmes precisavam agir com paciência e grande poder de dedução, aqui se exige do jogador uma dose imensa de perseverança e raciocínio. A descrição original afirma que estamos diante de “uma aventura de indenização em cores mínimas”. É isso. Mas ao mesmo tempo é muito mais.

Um navio fantasma

Obra Dinn era um navio que em 1802 fazia uma viagem de Londres para o Oriente. Com um total de 60 tripulantes a bordo, ele desapareceu em circunstâncias desconhecidas. Cinco anos depois, a embarcação retornou ao porto de Falmouth, no Reino Unido, e nós precisamos então assumir o papel de um investigador do escritório londrino da Companhia das Índias Orientais. O objetivo é descobrir o destino dessas pessoas, como morreram (se é que estão mesmo mortas), quem as matou, de que modo e por qual motivo. Tudo isso é importante para que a empresa responsável pelos seguros estabeleça quais famílias devem receber dinheiro e quanto lhes cabe. Enfim, trata-se de um trabalho burocrático.

Com essa descrição, pode parecer que Return of the Obra Dinn tem como proposta apenas a validação de informações. Mas a forma como temos que fazer isso coloca muitos elementos únicos no processo. Quando chegamos ao navio, recebemos um livro que contém o manifesto da embarcação (a lista de todas as pessoas, suas nacionalidades e funções), o mapa da viagem desde a saída do Reino Unido até o desaparecimento, algumas ilustrações dos tripulantes criadas por um artista que estava no Obra Dinn e capítulos que narram os acontecidos. Por algum motivo não explicado no jogo, o objeto que temos em mãos é um mágico e os capítulos são revelados à medida em que vamos desvendando partes da história. De forma também conveniente para os propósitos da narrativa, as ilustrações representam todos que estavam na viagem, mas não indicam seus nomes. Por fim, junto com esse livro recebemos também um relógio misterioso, que nos permite, diante dos restos mortais de alguém, reviver os instantes finais daquela pessoa. E é com esses recursos que devemos detalhar os destinos das almas que não estão mais ali.

A arte da dedução

Como mencionei antes, nenhuma das mecânicas do jogo é justificada no mundo em que estamos. Simplesmente é assim que funciona. A magia parece fazer parte dessa realidade e nossa tarefa é apenas identificar todos os desaparecidos, desvendar os fatos ocorridos e devolver o livro com as informações preenchidas. A partir daí, os benefícios serão pagos e a investigação será encerrada.

No entanto, as dificuldades aparecem logo nos primeiros instantes. As mecânicas do jogo são apresentadas logo quando entramos no navio e encontramos uma primeira ossada. Ao nos posicionarmos na frente desses restos mortais, nosso personagem saca o relógio e podemos então reviver o momento da morte daquele personagem. O estranho, no entanto, é que não é possível ver a morte ocorrendo, apenas ouvir. A tela nesse momento fica completamente escura, apenas com a legenda dos diálogos (todos em português, felizmente) aparecendo para nós. Os fatos que ouvimos duram poucos segundos e é possível perceber os personagens discutindo, se movimentando e, eventualmente, atacando uns aos outros. Depois disso vemos uma cena congelada do momento exato da morte. Nessa foto (que na verdade parece mais um diorama em três dimensões) vemos finalmente os tripulantes agindo. Por exemplo, um deles pode estar atirando em outro e outras pessoas próximas podem estar observando tudo. A junção do que escutamos momentos antes com a cena congelada é a primeira parte dos elementos disponíveis para a dedução que precisamos fazer.


Uma coisa intrigante no jogo é que ele não faz questão de ensinar muitas coisas sobre o funcionamento dos recursos que ele apresenta. Enquanto estamos diante de um ocorrido, por exemplo, é possível dar um zoom em qualquer um dos tripulantes da cena e assim localizá-lo em alguma das imagens disponíveis. No entanto, não fica claro para o jogador como fazer isso. Outro exemplo é o fato de que alguns corpos não estão mais presentes na embarcação, mas ainda podemos acessá-los por meio de outros. Contudo, é preciso descobrir isso sem nenhuma orientação. Não é difícil chegar a essas mecânicas, mas é incomum um jogo de investigação que apresenta pouca informação sobre o que devemos observar, ou como realizar boa parte das inferências necessárias para a resolução dos problemas. Não existem dicas, nem facilitadores, o que pode deixar muitas pessoas realmente perdidas e sem entender o que fazer. Pode parecer frustrante, mas devo dizer que esse processo de descoberta foi uma das coisas mais interessantes para mim. Existem, sim, alguns elementos de tutorial, especialmente no começo da jornada, mas são propositalmente bem limitados e funcionam mais para que você aprenda a utilizar o livro, o relógio e entenda como perceber as coisas que estão ao seu redor.

Baixíssima resolução — grande imersão

Return of the Obra Dinn utiliza um estilo gráfico muito peculiar. Lucas Pope tentou recriar no game, a experiência de utilizar monitores antigos. São seis estilos gráficos diferentes, todos com baixa resolução, mas ainda assim artisticamente muito bonitos. É estranho porque existe na aventura a exigência da atenção aos detalhes, mas a proposta de apresentação deixa esses detalhes difíceis de se perceber. Entendendo isso, existe a opção de diminuir o tamanho da tela dentro do jogo na tentativa de deixar tudo um pouco mais nítido. Funciona, mas algumas coisas são difíceis de se ver nessa escala reduzida. No modo portátil são dois níveis de nitidez, enquanto que jogando na televisão é possível escolher até três níveis. O que percebi como mais prático era alternar entre os modos dependendo da situação.



Não faz muito sentido tentar descrever os gráficos em 1 bit do jogo. Mas vendo imagens você vai certamente perceber o cuidado e presteza na criação do navio, das pessoas e dos elementos naturais (chuva, raios, iluminação etc). No entanto, é fato que nem todos vão considerar esse visual realmente bonito. Particularmente, considero os gráficos como uma das melhores coisas do título, principalmente ao imaginar o desafio que foi criar profundidade nesse nível de simplicidade. Justamente por isso acabei gastando mais tempo do que o necessário apenas para aproveitar melhor as cenas. No entanto, é preciso ressaltar a dificuldade gerada por essa escolha estética, pois muitas coisas são realmente complicadas de ver e eu mesmo fui enganado pela minha percepção em diversos momentos.

Contudo, a experiência estética de Return of the Obra Dinn não se resume apenas aos gráficos ultra limitados. O design de som é realmente primoroso e consegue compor muito bem a ambientação das cenas. Por este motivo, estamos diante de um game em que é extremamente recomendada a utilização de fones de ouvido. Muitas vezes é possível ouvir vozes ao fundo, ou sons de objetos que podem ajudar na identificação de algum personagem. Além disso, os sotaques são importantes para determinar se aquele determinado tripulante é um falante nativo do inglês ou se possui outra nacionalidade. Essa construção em 3D dos sons coloca você realmente no local daquele acontecimento e faz toda a diferença para a resolução dos enigmas.

Quando a dedução não é o suficiente

O grande problema de Return of the Obra Dinn é que ele exige do jogador mais do que a dedução pode oferecer. Existe uma lista enorme de tripulantes e um número ainda maior de possibilidades do que pode ter ocorrido a eles. Por exemplo, um marujo pode estar vivo ou morto. Mas se estiver morto, pode ter morrido por tiro (de arma, de canhão) ou esfaqueado, afogado, doente, por uma queda, empalado, eletrocutado etc. Por outro lado, se estiver vivo, onde ele está? Como escapou? Para que país? Para a maior parte dos casos, é preciso dizer, os elementos para as resoluções estão disponíveis no jogo, tanto nos diálogos, quanto nos elementos do próprio navio. Mas em um número significativo de ocasiões é preciso extrapolar muito os dados que são apresentados. E aí você deixa de fazer deduções (indo de situações gerais para casos particulares), para fazer o inverso, ou seja, induções (tomando casos particulares e chegando a conclusões gerais).

Isso é ruim porque pode criar o desespero da tentativa e erro, em que o jogador procura resolver os problemas por meio dos “chutes”. O jogo, é verdade, tenta limitar isso de forma bem inteligente. Enquanto avançamos é possível saber que descobrimos o destino de algum personagem solucionando a situação de três deles. A cada bloco de três mistérios resolvidos, uma notificação de acerto aparece na tela, apontando quais foram os acertos. Ao mesmo tempo que isso ajuda a tirar algumas dúvidas, impede a tentativa recorrente de adivinhação dos fatos ocorridos. Como disse antes, no entanto, alguns personagens aparecem muito pouco e descobrir o que aconteceu exige mais sorte ou intuição do que capacidade de raciocínio.



Outro problema está relacionado ao modo de acesso às memórias já descobertas. Em Return of the Obra Dinn a história vai sendo apresentada fora de ordem. Tanto é assim que as primeiras mortes que investigamos estão no último capítulo do livro. Contudo, depois de liberar todas as cenas, é possível revisitá-las a qualquer momento, o que é extremamente importante, pois apenas acessando a narrativa na ordem correta é possível chegar a algumas deduções. A questão complicada aqui é a forma de fazer isso. Para acessar uma memória (mesmo uma já vista) é necessário ir até o local onde aquele fato ocorreu. Como o navio é muito grande, com quatro setores distintos, essa proposta é extremamente punitiva. Mas talvez seja proposital. Afinal, considerando a situação do investigador, era exatamente isso o que ele teria que fazer. Além disso, ao caminhar pela embarcação é possível que se observe algo que não estava em foco antes. Ainda assim, não acho que seria tão ruim permitir a facilidade de rever as cenas a qualquer tempo, de qualquer lugar.

A narrativa também é importantíssima para desvendar os puzzles. E justamente por isso é impossível dar pistas dela aqui, já que isso seria o mesmo que revelar algumas das situações que devemos descobrir. Importante dizer que o livro apresenta dez capítulos, mas um deles fica travado mesmo depois que concluímos todo o trabalho. Esse capítulo só será revelado posteriormente, depois que o livro for devolvido ao seu dono. Quando visualizamos a história inteira já é possível sair do Obra Dinn e dar a missão por finalizada. Contudo, sem encontrar realmente todas as soluções (e é possível saber se as encontramos ou não) não temos acesso ao final verdadeiro do jogo. Ainda assim, caso siga esse caminho, será possível reverter o jogo para uma posição anterior depois dos créditos, e então concluir a aventura de maneira correta.


Investigação criminal

Return of the Obra Dinn é um jogo único. Com mecânicas de exploração e investigação que se adequam muito bem ao ambiente do game, a criação de Lucas Pope encanta pela sua estrutura e proposta. No Switch, especificamente, o título funciona muito bem, tanto no modo portátil quanto na televisão, ainda que tenha uma proposta estética que certamente não irá agradar a todos. Os controles são simples e o processo de descoberta das estratégias para a resolução dos enigmas é parte importante da experiência, mostrando uma boa integração entre a narrativa e a jogabilidade. Ainda que possua alguns pequenos problemas relacionados à dinâmica do jogo, Return of the Obra Dinn é uma grande adição à biblioteca do híbrido da Nintendo, sendo um título indispensável para aqueles que tem prazer pelo mistério e anseiam pela recompensa gerada pelas boas deduções.

Prós

  • Estética autoral;
  • Design de som primoroso;
  • Estrutura narrativa bem casada com as mecânicas do jogo;
  • Ótima construção da maioria dos personagens, mesmo com pouquíssimos recursos.

Contras

  • Impossibilidade de acessar as cenas já vistas sem se deslocar pelo navio;
  • Alguns destinos dos personagens só podem ser descobertos com extrapolação das informações.
Return of the Obra Dinn — Switch — Nota: 9.5
Análise produzida com cópia digital cedida pela 3909 LLC

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Pesquisador nas áreas de estética e cibercultura com Mestrado em Cultura e Sociedade (UFMA) e Doutorado em Comunicação (UnB). Além de escrever sobre jogos, produz o Podcast Ficções e tem um blog sobre literatura, filosofia e cotidiano.
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