Análise: Dragon Quest (Switch): lá e de volta outra vez

Remake em alta definição traz o clássico seminal para o console híbrido. Seria esta a sua edição definitiva?

em 02/10/2019

Chegando meio de surpresa à eShop do Nintendo Switch na semana passada, a remasterização do primeiríssimo jogo de Dragon Quest marca um momento curiosamente único para a franquia: trata-se do retorno dessa versão inaugural para um console doméstico no Ocidente pela primeira vez desde o lançamento original para o Nintendinho, ainda sob a alcunha de Dragon Warrior. Embora no Japão não tenham faltado ports de versões remasterizadas diferentes — incluindo esta, que saiu ano passado na região para o PlayStation 4 — os fãs ocidentais ficaram a ver navios até o presente momento.

Com gráficos totalmente repaginados e tradução oficial refeita do zero, trata-se provavelmente da melhor chance de se experienciar o título atualmente. A pergunta que fica é: será que vale a pena conferir, ou se trata apenas de um documento histórico para os "arqueólogos" de plantão? Decida-se com a gente!


"Adventura Fevdal"

O continente de Alefgard desfrutou de muitos anos de luz e prosperidade desde a já mítica batalha do herói ancestral Erdrick contra as forças da escuridão que um dia reinaram soberanas. No entanto, uma nova ameaça das trevas tem se reerguido e ameaçado toda essa paz: das entranhas do arruinado Charlock Castle, o misterioso Dragonlord coordena uma investida de monstros por toda a extensão conhecida do mundo.

Assim como ocorrera no passado, cabe a você, descendente do lendário Erdrick, expulsar as trevas de Alefgard, recuperando a fonte de luz surrupiada pelo mago das trevas. Nosso solitário e silencioso cavaleiro deve partir em uma jornada que retraça os passos de seu antepassado famoso, em busca dos artefatos e de toda a experiência que o permitirão encarar o vilão cara-a-cara, antes que seja tarde demais!

Com este enredo bastante simples e linear, Dragon Quest toma inspiração nos RPGs ocidentais com temática de fantasia medieval, reinterpretando-a com um toque cheio de personalidade advindo da assinatura audiovisual da série, fruto da parceria dos designs de Akira Toriyama e das composições de Koichi Sugiyama, presentes com toda a força desde esse primeiro capítulo.

Embora o enredo extremamente básico provavelmente não deva impressionar àqueles que buscam por algo com maior substância, é muito interessante notar como a narrativa aqui já prepara todo um estilo e camadas de lore que serão exploradas pela franquia em todos os anos subsequentes — algo um pouco semelhante ao que seria pensarmos na trama do primeiríssimo The Legend of Zelda (NES), por exemplo.



Assim como ocorreu com outros remakes do clássico, a versão para Switch não tenta "reinventar a roda" adicionando quaisquer elementos estranhos à jornada original de 1986. As "cutscenes" são praticamente inexistentes, o diálogos breves e informativos e nosso herói — como não poderia deixar de ser — jamais quebra com seu voto de silêncio total.

Embora isso possa ser um fator negativo para quem esperava uma recontagem mais incrementada da história, a escolha também mantém a ênfase em momentos icônicos (e até um tantinho hilários) do game original, como o resgate da princesa Gwaelin, que deve ser levada até Tantengel no colo de nosso herói! Precisaríamos esperar até a sequência para ver uma princesa mais capaz de se auto-resgatar.



Outro fator que merece todo o destaque positivo nesse remake é a forma engenhosa que a equipe de localização se usou para "fazer as pazes" com alguns elementos da versão ocidental original, conhecida por uma série de adaptações livres. A localização de Dragon Warrior foi famosa pela tentativa de diminuir e atenuar os fatores identificados como "excessivamente japoneses" do título, o que foi desde uma adaptação de nomes e tonalidade dos diálogos até uma criminosa rejeição completa do artwork de Akira Toriyama nos materiais de divulgação.

Enquanto muito dos fãs, sob uma perspectiva mais moderna, torceram o nariz para essa tentativa de atenuar o ar idiossincrático do mundo de Dragon Quest: seus monstros cartunescos, ares coloridos e humor característico; é também inegável que vários elementos dessa leitura ocidentalizante se tornaram icônicos ao seu próprio modo. O nome do herói lendário, por exemplo, é um deles: Loto/Roto se tornou Erdrick, e vindo de carona toda a nomenclatura das cidades e personagens adquiriu uma cara própria que torna a versão japonesa um tantinho estranha para nós.

Enquanto a localização do remake para o Game Boy Color tentou resgatar os elementos originais da versão japonesa e mesclá-los de forma um tanto desajeitada com o lore ocidental, esse novo remake traz uma localização que brinca com a tentativa de mão pesada em garantir ares de fantasia medieval de raiz para a aventura colorida de Erdrick, fazendo uso satírico do inglês antigo (ye olde english) para efeitos comédicos.

Os fraseamentos e expressões hilárias complementam muito bem a escolha por manter todos os nomes fiéis à versão original do NES. O único porém é que a falta de uma (previsivelmente improvável) localização para o português nos privou de uma aventura regada ao bom português feudal. Para os mais experientes na língua inglesa (ou para os que desejam treinar um pouquinho mais os cantos mais obscuros do idioma), o título é um prato cheio de prosa shakesperiana narrando o espancamento de monstrinhos adoráveis de olhos esbugalhados.


JRPG à moda antiga

O mesmo do que dissemos a respeito do enredo vale também para a experiência de jogo em si. Para quem já está familiarizado com os altos e baixos da versão original, podemos introduzir a conversa da seguinte forma: (quase) nada mudou. Já aos jogadores recém-chegados que possam estar acostumados a associar o gênero JRPG a narrativas grandiosas e sistemas de batalha cheios de detalhes intrincados, vale começar com um aviso: não é essa a proposta deste primeiro Dragon Quest.

Como produção em grande parte responsável por inaugurar o gênero, efetuando uma releitura para os consoles dos RPGs de computador ocidentais (como os das séries Ultima e Sorcery, que faziam bastante sucesso no Japão), esse jogo é uma experiência básica cheia dos elementos característicos dos primórdios dessa arte: grinding violento, progressão linear truncada por mistérios um tanto aleatórios e um sistema de batalha desprovido de qualquer complexidade.



Trata-se de uma faca de dois gumes, já que a simplicidade da experiência é um de seus grandes trunfos. Afinal de contas, quantos jogos do gênero podem ser pegos para uma jogatina rápida e descomprometida? A aventura aqui segue uma estrutura sem grandes rodeios, ao melhor estilo "pegar e sair jogando" — em poucas horas, é possível progredir com tranquilidade e ver tudo o que o mundo de Alefgard reserva ao jogador. Quer dizer, se o jogador tiver alguma noção do que fazer para avançar.

Isso porque, embora conte com um mundo bastante pequeno e uma história especialmente abreviada, o design do título remonta à época em que os desenvolvedores extraiam mais desafio e tempo de jogo de uma progressão onde fica pouco claro ao jogador por onde seguir. Itens ocultos em locais totalmente arbitrários, desenhos traiçoeiros das dungeons e das cidades, bem como quests nada claras quanto à sua própria natureza são o "arroz com feijão" deste RPG clássico.



Por sorte (ao menos em parte), esse remake em alta definição aprofunda mais ainda uma tendência já vista nos anteriores, removendo totalmente o sistema de comandos do original em prol de uma interação mais automatizada e simplificada: ao invés de ter de optar, a partir de um menu de ações, se o personagem deve tentar abrir um baú, descer uma escada ou falar com uma pessoa, essas interações se dão todas automaticamente com um simples pressionar do botão A.

Embora seja uma adaptabilidade louvável — o sistema original, além dos ares arcaicos e pouco convidativos, acabava servindo apenas como mais um desses fatores de "encheção de linguiça" para a progressão do jogo —, a ausência dessas opções se faz presente em algumas passagens específicas da história, com a interação automática truncando um pouco as coisas, em especial para alguém já acostumado com a sofrência do sistema original. No total, trata-se de uma mudança para melhor.



Por outro lado, a opção em sinalizar com um pequeno brilho luminoso os itens ocultos no mapa é uma simplificação que acaba por distorcer a experiência original. Grande parte do desafio do jogo está em reunir pistas de NPCs sobre os locais onde determinados artefatos se encontram, porém tudo isso se torna totalmente desnecessário uma vez que o jogo sinaliza esses "segredos" mesmo que não tenhamos obtido a informação em questão.

Seria o equivalente de sinalizar com flechas os locais a serem investigados em um adventure do tipo point-and-click — por mais que as pistas sejam truncadas, qual é o sentido de manter a progressão tão fiel ao original e, ao mesmo tempo, entregar o ouro assim de forma tão descarada para o jogador? Uma solução simples para o dilema seria uma opção de dificuldade para habilitar ou não essas dicas visuais: certamente seria mais recompensador ao jogador recém-chegado tentar descobrir por sua conta esses elementos, ao invés de ter tudo entregue assim de mão beijada!



Já a frente das batalhas mantém o essencial do título original de forma praticamente inalterada. Seguindo um esquema de encontros aleatórios, a transição para a icônica tela de batalha segue os moldes do original, deixando o mapa atual do jogo visível ao fundo. Todos os combates se resumem a lutas um-contra-um entre nosso Herói e um dos vários monstrinhos carismáticos (e perigosos) que assombram todo o mapa do mundo, algo que é bastante peculiar para o subgênero, onde os combates em equipe acabaram se tornando a regra.

Forçado a uma aventura solitária, o descendente de Erdrick é um verdadeiro faz-tudo, ocupando-se de habilidades de combate corpo-a-corpo, magias de ataque e cura bem como truques para facilitar a navegação pelo mapa. As batalhas costumam trazer simplicidade e linearidade: não há buffs ou debuffs, a variedade de magias é bem baixa e os únicos status são sleep (no qual o personagem afetado cai no sono por alguns turnos) e fizzle (no qual o personagem afetado fica impossibilitado de utilizar magias).


Com isso, a vitória ou derrota normalmente se dão como resultado direto dos atributos das partes envolvidas, o que significa dizer que são determinadas na maior parte do tempo pela quantidade de grinding efetuado pelo jogador (o que inclui o ouro necessário para bancar um inventário igualmente linearizado). Embora o sistema traga lá seus fatores aleatorizantes, a progressão das lutas segue a da história e é marcada pela linearidade e por "degraus" de dificuldade pouco contornáveis via estratégia.

Claro que há um espaço para a tática, em especial aos corajosos que tentarem se aventurar a vencer o jogo o mais rápido possível. Desvios, defesas e ataques críticos podem fazer toda a diferença e garantir a vitória contra um "chefe impossível". Que essas batalhas, recriadas aqui fielmente em toda a sua simplicidade, ainda divirtam e empolguem tanto é uma prova da genialidade do game design original.



No entanto, esperar elementos mais customizáveis ou variados das batalhas deste primeiro Dragon Quest seria algo como procurar fatores de livre exploração no primeiro Super Mario Bros. (NES): de certa forma a ideia já está lá, mas o foco da jornada aqui certamente é outro. Como um dos fundadores do gênero, o combate aqui representa a forma mais básica que rapidamente seria melhor trabalhada por seus sucessores e pelo então concorrente, Final Fantasy (NES), que chegaria "quebrando tudo" com um sistema mais customizável de party em pouco tempo.

Minha impressão é a de que as alterações em relação ao jogo original foram mínimas, focando-se na correção de alguns bugs e, ao que tudo indica, a pequenos ajustes nos atributos de experiêncai e dos inimigos. Embora não tenha feito a comparação de forma mais precisa, me pareceu que a progressão dos níveis foi um pouco menos truncada do que no original, porém por outro lado com os chefes trazendo um desafio um pouco mais elevado. Trata-se de uma experiência desafiadora, porém bastante convidativa e muito recompensadora para quem se interessar em passar um tempinho com um dos primeiros exemplares do subgênero de forma praticamente intocada.


Lá e de volta outra vez

Por detrás de toda a aparente simplicidade, o fato é que a produção também revela um design engenhoso que merece respeito por si só. Ainda que sua progressão seja toda construída em torno de alguns poucos obstáculos embaralhados de forma a maximizar a percepção da extensão do jogo, o fato é que trata-se de um título para qual eu sempre retorno quando em busca de uma experiência retrô e breve no gênero, e cada vez saio apreciando mais um ou outro de seus elementos.

Embora elogiar novamente a apresentação audiovisual possa correr o risco de ser um "chover no molhado", não tem muito como escapar: as trilhas de Sugiyama e os monstrinhos e personagens de Toriyama combinam-se em uma ambientação tão rica que o jogo me desperta um senso de nostalgia comparável aos dos meus jogos favoritos de infância — sendo que, curiosamente, não se trata de um deles! Quer prova maior do quanto a produção pode ser carismática do que essa?



Já que é assim, o tratamento que a frente audiovisual recebeu nessa remasterização não poderia deixar de ter um papel central no sucesso (ou não) da empreitada. Baseada na versão Mobile lançada alguns anos atrás, essa releitura traz uma mescla curiosa de gráficos em HD com visuais retrô ao estilo 16-bits. Enquanto os mapas e cenários são renderizados com cores vivas que lembram bastante os visuais de Dragon Quest VI (SNES), os sprites de personagens e dos monstros em batalha são praticamente recriações em alta definição do artwork original da produção.

O resultado final me agradou bastante, já que não apenas toda a reconstrução é extremamente fiel ao game original, como a resolução de tela do Switch faz justiça a esses mapas muito melhor do que a disposição vertical dos smartphones. Outro ponto no qual essa versão supera a dos celulares é a interface de usuário, cujas fontes e organização do texto retomam o estilo do jogo original dispensando os menus genéricos e pouco atrativos do lançamento anterior.



No entanto, não é difícil imaginar que os fãs mais "puristas" possam estranhar alguns aspectos dessa remontagem, em especial no que diz respeito ao contraste entre os elementos HD e 16-bits. Embora os monstros sejam bem representados em sprites com coloração bastante fiel aos sketches originais de Toriyama, os sprites de nosso herói e dos NPCs podem parecer deslocados em relação ao mundo pixelizado que habitam — em especial devido às animações um tanto truncadas.

Trata-se de uma situação semelhante à que eu encontrei em Grandia HD Collection (Switch): uma mistura inusitada mas que ficou muito agradável tanto no modo portátil quanto em docked. No entanto, em se tratando de uma chegada tão aguardada (e tardia) do clássico para um console de mesa, não podemos deixar de imaginar que, para clamar o posto de "edição definitiva", o título poderia trazer opções de customização que revisitassem seu rico passado de remakes. A possibilidade de trocar o estilo visual a la Super Mario Maker, indo do colorido simples do NES ao maior detalhamento da versão para SNES — e, por que não, à reimaginação completa da versão do GBC — seria um fator de venda poderosíssimo para esse port. Necessário? Não. Mas seria demais!



O mesmo vale também para a icônica trilha sonora: as versões orquestradas apresentadas aqui (provavelmente baseadas nas Symphonic Suites) repaginam as faixas provavelmente de forma mais fiel com sua visão original, e casam muito bem com os efeitos sonoros 8-bits, mantidos religiosamente intactos mesmo nas versões mais recentes da franquia. No entanto, a possibilidade de revisitar as releituras dos velhos temas a partir das paletas de som do NES, SNES e GBC poderia ser outro fator de incremento para uma possível versão definitiva, que por enquanto fica apenas nos nossos sonhos delirantes de fanboy.



No balanço geral, o relançamento de Dragon Quest para o Switch cumpre muito bem o papel de trazer de volta o título clássico para os consoles domésticos sob uma apresentação audiovisual muito agradável e com extrema fidelidade à experiência original. Ficando a poucos passos de ser uma legítima edição definitiva, trata-se de um retorno mais do que bem-vindo da franquia, que com sorte continuará a dar as caras com ports de seus capítulos clássicos para além da trilogia original.

Prós

  • Clássico absoluto que continua a divertir muito ainda hoje, para além de seu valor histórico;
  • Apresentação audiovisual primorosa do remake, aproveita os melhores aspectos da remasterização Mobile e corrige algumas de suas falhas;
  • Extrema fidelidade ao jogo original, com ajustes mínimos de qualidade de vida, garante uma experiência autêntica do título, adaptada para os dias de hoje;
  • Trata-se da versão mais completa do jogo, ainda que não possa ser considerada uma "edição definitiva".

Contras

  • Ausência de conteúdos extra como personalização dos visuais e da trilha sonora deixa escapar a oportunidade de uma "edição definitiva" do clássico;
  • Sistemas datados e simplicidade da experiência podem pesar contra seus atrativos, em especial para jogadores mais acostumados com os JRPGs contemporâneos.
Dragon Quest — Switch — Nota: 8.0
Análise produzida com cópia digital cedida pela Square Enix
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é gamer pra todo jogo, mas tem predileção por títulos retrô e um bom e velho JRPG. Sonic, Donkey Kong Country, Ratchet & Clank, Final Fantasy e Disgaea são algumas das séries que formaram a paixão pelos games, desde que ganhou seu Mega Drive, muitos (nem tantos!) anos atrás. Além de escrever para o Nintendo Blast e Game Blast, pode ser encontrado tagarelando no Plano Crítico.
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