Para se entender o mundo, a sociedade e até os seres humanos, temos de conhecer os mitos que compuseram a nossa realidade por séculos. A importância da mitologia é tão grande que suas narrativas vivem até hoje, seja em estudos mais formais ou até mesmo para inspirar produtos de entretenimento como The Legend of Zelda.
A franquia faz uso constante das histórias mitológicas, além de contar com a presença de diversas outras culturas para compor o seu universo. Ao observar diferentes momentos presentes nos jogos é possível perceber, além das simples referências, uma adaptação de narrativas que fazem parte da cultura humana.
Mitos que se tornaram lenda
Logo no primeiro jogo da franquia somos apresentados aos três protagonistas que fazem essa história ser incrível: Link, Zelda e Ganon(dorf). Ao longo dos anos fomos descobrindo cada vez mais sobre os elementos que compõem toda a mitologia de The Legend of Zelda, entre eles, o poder usado para conceber a terra de Hyrule: a Triforce.
Esses três personagens centrais na história foram os escolhidos para carregar essa força representada por três triângulos dourados, sendo que cada um simboliza as virtudes dos seres humanos. O fragmento destinado à princesa Zelda é a Triforce da sabedoria. Isso é compreensível pois em diversos jogos ela é representada como uma monarca perseverante que busca resolver os problemas a partir da diplomacia. O fragmento que está com o temível Ganon é a Triforce do poder, pois entre todos os habitantes de Hyrule ele é o que mais valoriza o poderio bélico para atingir os seus objetivos. Já Link, o herói das aventuras, foi designado ao fragmento que simboliza uma das virtudes mais nobres dos seres humanos, a Triforce da coragem. É possível afirmar que ele recebeu tal fragmento por sempre ser lançado ao desconhecido e enfrentar os seus maiores medos para salvar o mundo das trevas.
Escolhidos pela Triforce, a batalha de Link e Zelda contra Ganon nunca terá fim |
O simbolismo em The Legend of Zelda
Os elementos que podem ter inspirado a Triforce na franquia estão presentes em diversas culturas ao redor do mundo, como a celta e nipônica.Triskele da mitologia celta |
Nos jogos que simbolizam a essência das aventuras de The Legend of Zelda a teoria da Jornada do Herói, desenvolvida pelo mitólogo Joseph Campbell, está muito presente. O herói, Link, desperta para um mundo desconhecido e após ser auxiliado pela figura de um mentor - caracterizado pelo sábio que oferece a espada no Zelda para o Nintendo Entertainment System (NES), a Árvore Deku (Ocarina of time) e o King of Red Lions (Wind Waker) – ele segue a aventura com o conhecimento necessário para superar os obstáculos da sua jornada. No entanto, diferentemente da teoria de Campbell, em nenhum momento Link recusa o seu destino, o portador da Triforce da coragem enfrenta os seus medos para concretizar a profecia.
Os obstáculos enfrentados por Link em suas aventuras, ao longo dos diversos jogos, se passam em cantos geográficos característicos de uma épica aventura medieval: o inexpugnável vulcão de Death Mountain, o denso pântano de Southern Swamp e a misteriosa floresta de Lost Woods.
Em diversos jogos da franquia a floresta de Lost Woods é o berço da espada que bane o mal: a Master Sword. E por Link ser o herói destinado a acabar com a escuridão deve obtê-la a qualquer custo. No entanto, a jornada do herói é constituída por diversas provações de coragem e sabedoria, uma delas é adentrar a mata que aqueles que não possuem as virtudes necessárias se perderão.
Stalfo em Ocarina of Time |
O interessante é que alguns desses elementos geográficos são similares a uma história da mitologia arthuriana sobre um lugar mágico, conhecido como a floresta de Brocéliande. Nesse local sagrado se encontrava o Vale do Não-Retorno, onde a fada feiticeira Morgana aprisionava os cavalheiros infiéis às suas damas e, segundo algumas lendas, eles caminhariam pela floresta por toda a eternidade sem encontrar a saída.
Entre as histórias que compõem a mitologia celta, os meios aquáticos, como lagos e rios são muito cultuados, pois eram as moradias das fadas e seres divinos. Muitos autores acreditam que a floresta de Brocéliande é a localização de outro importante mito arthuriano, o da fada Viviane, a dama do lago. Segundo a lenda, foi Viviane quem entregou a espada Excalibur a Arthur.
A dama do lago entrega a espada Excalibur ao rei Arthur |
Uma das histórias mais conhecidas do rei Arthur é a da espada na pedra (inspiração direta da franquia Zelda) em que somente o legítimo rei da Inglaterra poderia retirá-la. No entanto, essa lâmina ainda não era a verdadeira Excalibur. Anos depois de começar o seu reinado a voz da dama do lago pede para que a espada seja jogada em seu domínio, para assim elevá-la ao seu poder máximo. A partir dessa história é possível notar outra inspiração para a franquia The Legend of Zelda, em que desde os primeiros jogos como, por exemplo, A Link To The Past, há a possibilidade de lançar itens como escudos, túnicas e até mesmo a Master Sword na Fairy’s Fountain, para aumentar o seu poder.
No princípio era o Caos
A origem do universo de The Legend of Zelda apresenta uma similaridade com religiões que buscavam entender a realidade que os envolviam. Ao longo dos jogos, mais especificamente em Ocarina of Time, foi dito que em um passado muito distante haviam três grandes deusas douradas que criaram o mundo a partir do caos: Din, a deusa do poder, aquela que cultivou a terra; Nayru, a deusa da sabedoria, aquela que criou as leis do universo para o manter em ordem; e Farore, a deusa da coragem, aquela que deu vida ao mundo ao conceber os habitantes. Quando o trabalho estava feito, as três deusas partiram para os céus, deixando para trás um fragmento do poder usado para criar o mundo, conhecido como Triforce, que ficou sob a guarda de Hylia, uma divindade criada pela tríade criadora. A partir disso, foi construído a narrativa que deu origem à terra de Hyrule e aos seus habitantes.Nas mais diversas culturas as histórias que compõem a origem do universo (cosmogonia) narram que no começo havia apenas o caos. Entre as mitologias que nós, do mundo ocidental, temos mais contato são a grega e a cristã. Em The Legend of Zelda, é compreensível notar as similaridades com ambas as crenças, em que a partir de um intermédio divino o caos deu lugar à ordem.
De acordo com a mitologia grega, no começo havia apenas um ser supremo conhecido como Caos, mas sem qualquer explicação dele surgiu uma deusa que simbolizaria a vida, Gaia. Muitas vezes confundida com o próprio planeta Terra, seu corpo seria a origem da natureza que conhecemos, ao formar a fertilidade do solo, por onde surge toda a existência. Além de Gaia, do Caos também nascem: o princípio mais primitivo da atração, conhecido como Eros e a personificação das trevas, conhecido como Tártaro. Sob a influência de Eros, Gaia passou a desejar um companheiro e para isso gerou – sozinha – Urano, o Céu Estrelado. Assim, o universo caminhava para a ordem com a organização do Tártaro nas profundezas, Gaia nas terras férteis e Urano no céu.
Já na mitologia cristã, que acredito ser mais conhecida pela maioria das pessoas, o mundo foi criado por um único Deus, que durante sete dias concebeu a luz, a terra, os mares e os seres humanos. É interessante e divertido pensar que em todas essas mitologias, seja a grega, cristã ou até mesmo a de Zelda, apesar de seguirem caminhos muito diferentes entre si, apresentam um início e fim parecidos, com o caos dando lugar para a ordem.
Com uma narrativa advinda de histórias da cultura mundial, a franquia criada por Shigeru Miyamoto faz uma combinação dos elementos que fizeram os mitos serem contados ao longo das gerações. Com isso, a eterna batalha de Link e Zelda contra Ganon transformam as alegorias do nosso mundo em uma história completamente nova, concebendo assim a maior lenda dos videogames.
Revisão: André Carvalho