A relação entre Ace Attorney e a ópera

Há mais coisas entre a franquia dos tribunais e o espetáculo musical do que poderíamos supor.

em 29/05/2019

Phoenix Wright: Ace Attorney é um jogo lançado originalmente em 12 de outubro 2001 para GBA. Sua estreia ficou restrita ao Japão, a exemplo de seus dois sucessores, Phoenix Wright: Ace Attorney - Justice for All e Phoenix Wright: Ace Attorney - Trials and Tribulations. Porém, a partir de 2005, o público do Ocidente pôde conhecer melhor o universo dessa série com o lançamento de um remake do primeiro jogo para Nintendo DS na América do Norte. Desde então, os jogadores deste lado do mundo receberam a maioria das aventuras do advogado de terno azul, com exceção de alguns spin-offs.


Sem dúvidas, estão entre os pontos altos da franquia o carisma dos personagens e o enredo dos casos; no entanto, há um fator essencial que torna vários momentos da narrativa mais marcantes em nossa memória: a música. Sem ela, a experiência geral com os jogos de Ace Attorney certamente seriam bem menos emocionantes. Essa ligação com a música remete bastante à ópera, gênero teatral surgido no século XVI. Mas como obras separadas por tantos anos podem ter alguma ligação?

Dramas musicais

A ópera se assemelha bastante ao teatro, utilizando vários elementos presentes neste, como a cenografia, a atuação e o roteiro, mas a grande diferença é o extenso uso da música, que acompanha toda a história do início ao fim. Em geral, os diálogos também costumam ser cantados ao invés de falados. Por ter se originado na Itália, muitas óperas são encenadas em italiano ou latim, mas há diversas exceções a essa regra. De qualquer modo, a música está sempre permeando a obra, seja através do instrumental da orquestra, do coro dos coadjuvantes ou da ária (canção solo) dos protagonistas. Inclusive, os personagens são classificados segundo o timbre de suas vozes, o que demonstra a importância do canto para a ópera, já que cada ator precisa ter um tipo vocal certo para participar do espetáculo.

A franquia Ace Attorney sempre investiu mais em elementos de enredo do que na jogabilidade em si, ainda que tenha implementado algumas novidades ao longo dos anos, como a Magatama do Phoenix, o bracelete do Apollo e o Mood Matrix da Athena. Porém, a fórmula básica dos jogos não sofreu nenhuma alteração desde sua estreia e, mesmo assim, ela não se tornou repetitiva com o tempo. Isso se deve, é claro, aos lançamentos espaçados, que ajudaram a não desgastar a série, mas também podemos atribuir a boa manutenção dos títulos aos enredos peculiares de cada caso (embora todos se tratem de defender alguém de uma acusação de assassinato), aos personagens bem construídos e à trilha sonora sempre atualizada.

Todo jogo possui novas melodias para lugares já bem conhecidos pelos jogadores, como a sala de espera do tribunal e a cadeia: isso ajuda a manter a singularidade de cada capítulo da franquia. Até mesmo as músicas que se repetem em outros títulos, como o tema da Maya e do Steel Samurai, recebem outra versão, sinalizando que há algo diferente naquele lugar ou personagem desde a última vez que o vimos. Assim, é inegável a importância que a música tem para Ace Attorney, sendo um recurso amplamente utilizado pelos desenvolvedores para criar a atmosfera de cada momento, além de soprar um ar de novidade na série. Não existe ópera sem orquestra, assim como é impossível imaginar um jogo de Phoenix Wright sem suas icônicas melodias.
Um dos locais mais visitados pelos jogadores


Memória musical

Houve uma grande produção operística na Europa entre os séculos XVII e XIX, sobretudo na Itália, Alemanha e França, as principais expoentes dessas obras. A partir do século XX, o advento do cinema, rádio e outras tecnologias de comunicação relegou a ópera ao segundo plano, tornando-a cada vez menos popular e relevante no meio artístico. Mesmo assim, deixou um importante legado para o mundo, com histórias que foram adaptadas para as telonas e que serviram de inspiração para vários desenhos, como é o caso de “O Barbeiro de Sevilha”, composta por Gioachino Rossini. Umas das árias mais famosa dessa ópera, “Largo al Factotum”, se tornou popular no senso comum graças às paródias feitas por Pernalonga e Pica Pau, as quais certamente marcaram a infância de várias pessoas.

O original:

A paródia:

Um aspecto que segue sendo usado até hoje é o conceito de leitmotiv (motivo condutor). Essa técnica foi usada pela primeira vez por Richard Wagner, um dos mais famosos compositores alemães, em “O Holandês Voador”, e continuou presente em todas as óperas posteriores do artista. Consiste, basicamente, na utilização de temas que tocam sempre que um personagem ou assunto surgem na trama, criando, desse modo, uma associação entre aquela melodia e a passagem encenada.

Esse recurso também apareceu em algumas obras de outros autores do século XIX, como Giuseppe Verdi e Georges Bizet. Posteriormente, o cinema e a televisão iriam se valer dessa técnica também, por exemplo, em O Senhor dos Anéis e Star Wars, quando aparecem, respectivamente, a “Companhia do Anel” e o vilão Darth Vader. Já nas telenovelas, nós temos o clássico exemplo do par romântico central que recebe uma música associada a ele.
Richard Wagner
No mundo dos jogos, não é novidade o uso dessa técnica. Do tema original de Super Mario Bros. à Zelda’s Lullaby, temos diversos exemplos de leitmotiv. No entanto, Ace Attorney se destaca como uma franquia em que esse recurso causa um impacto ainda maior. É certo que há diversas canções marcantes espalhadas pelos mais diversos gêneros de games, mas pela minha experiência pessoal, elas raramente cumprem tão bem a função de leitmotiv quanto as melodias dos tribunais.

Isso se deve, provavelmente, a uma diferença fundamental: a quantidade de ação envolvida nos títulos. Jogos como The Legend of Zelda: Ocarina of Time e Xenoblade Chronicles 2 possuem grandes trilhas sonoras, mas em geral mantêm a mente do jogador ocupada com puzzles e batalhas frenéticas, além de exigir um mínimo de reflexo com os controles e esquema de botões. Eles também oferecem um mundo grande cheio de vida e locais para explorar. Assim, é como se a música acabasse por se diluir em meio a isso tudo, ficando em um plano menor no contexto geral.

 Por outro lado, na série Ace Attorney, não há movimentação e grandes cenários, apenas um fundo estático e a imagem de um personagem falando. O visual simples é efetivo para a proposta da franquia e permite um destaque maior das melodias, que contribuem de modo mais efetivo para a narrativa. Os comandos simples, a inexistência de limites de tempo ou da possibilidade de ser morto e a natureza "parada" da jogabilidade são fatores que nos ajudam a focar em outros elementos.

Como não há muitas coisas para prestar atenção em Ace Attorney, além do próprio texto, a música vem para primeiro plano e é mais facilmente notada. Assim, ela se torna parte fundamental da história, ao invés de um mero acompanhamento, e cria vínculos mais fortes com os personagens a que estão associadas, como The fragrance of dark coffee do Godot, Turnabout Sisters da Maya, entre tantos outros. É impossível escutar esses temas sem lembrar de seus respectivos personagens e vice-versa. 
Café + jazz = Godot


Um ponto válido a ser comentado novamente e discutido um pouco mais a fundo é o cuidado que Ace Attorney tem com as composições que aparecem em mais de um jogo. As melodias nunca são completamente iguais a suas aparições anteriores. Embora outros jogos também utilizem variações, quando se trata de Ace Attorney, tem sempre mais do que aparenta sobre esse aspecto.

Há duas maneiras que a série reutiliza suas músicas: a primeira consiste no uso de remixes. Quando um tema surge novamente em outro título, ele sempre contará com algum diferença que, em geral, irá dialogar com o estado atual do personagem a que está vinculado. Um bom exemplo disso é o leitmotiv da Ema Skye. Ela apareceu pela primeira vez em Rise from the ashes, o episódio extra de Phoenix Wright: Ace Attorney, presente a partir das versões para Nintendo DS. Ema atua como uma espécie de substituta de Maya, que partiu para treinar seus poderes espirituais. Então, é natural que o tema de ambas possua algumas semelhanças, como o fato de serem melodias animadas e ligeiramente pueris, além de compartilharem o nome Turnabout Sisters.

Tema da Maya:

Tema da Ema:

Em Apollo Justice: Ace Attorney, Ema retorna alguns anos mais velha e rabugenta, por ter falhado no teste de cientista forense e estar atuando apenas como uma detetive regular da polícia. O crescimento da personagem é refletido em seu tema, agora chamado Ema Skye - Scientific Detective, que assume um tom menos alegre e mais neutro em alguns trechos; porém, mantendo a ideia de que ela, no fundo, ainda é nossa velha amiga obcecada por aparatos científicos.


Por fim, em Phoenix Wright: Ace Attorney - Spirit of Justice, sua última aparição até o momento, Ema consegue se tornar cientista forense, o que a deixa bem mais feliz do que em nossos últimos encontros. Novamente, seu tema sofre uma transformação, adquirindo, agora, uma batida mais alegre, mas sem cair para algo infantil. Podemos perceber o sentimento de realização de Ema, mais madura do que nunca, mas que poderia sair dançando a qualquer momento.

O segundo modo que Ace Attorney muda suas músicas para se adequar ao contexto da história é bem mais simples e compreensível. Algumas composições recebem uma versão mais lenta e triste, como é o caso do Steel Samurai Theme, que em Phoenix Wright: Ace Attorney - Justice for All foi modificado e se tornou Reminiscing - The Steel Samurai Ballad, uma das músicas mais tristes da série. Esse artifício é muito útil para indicar o estado de espírito de um personagem ou daquela passagem sem criar uma música nova, mas apenas modificando a melodia já existente. Assim, vemos um dos melhores usos do conceito de leitmotiv em videogames.

A comédia de histórias trágicas

A ópera pode ser dividida em alguns subgêneros, para além dos clássicos “comédia” e “tragédia”. Essas categorias dizem respeito aos aspectos valorizados na obra e ao país em que ela foi produzida. Para nós, as classificações mais interessantes são a Ópera-Buffa e a Ópera-Comique. O primeiro termo se refere às óperas produzidas na Itália de caráter cômico e burlesco, que mantinham um efeito dramático, mas sem se levar muito a sério. Os personagens eram estranhos, malandros e exagerados. Um grande exemplo desse tipo de obra é o próprio “O Barbeiro de Sevilha”. Já o segundo subgênero diz respeito às óperas feitas na França que possuíam diálogos falados. Posteriormente, ela passou a ser associada com a comédia, embora a ação nem sempre fosse cômica. O maior expoente é “Carmen” de Georges Bizet.

E onde entra Ace Attorney? É possível associar os jogos da franquia aos dois tipos de ópera mencionados quando paramos para pensar sobre o enredo dos títulos. Há uma grande carga de comédia presente na história, o que fica claro após lermos os diálogos entre Phoenix e Maya ou quando precisamos interrogar alguma testemunha. Além disso, existe uma gama de personagens peculiares em todos os casos, sejam eles réus, promotores ou o próprio juiz.
A cara de quem quase sempre está perdido em meio às batalhas de argumentos

É evidente que isso reforça ainda mais a aura leve e cômica que permeia a série. Do mesmo modo, há momentos tristes, sérios e dramáticos (afinal, são jogos que tratam de assassinato também). Assim, podemos ligar a comédia de Ace Attorney à Ópera-Buffa e a parte dramática à Ópera-Comique, que ainda tem como semelhança o aspecto do diálogo falado ao invés de cantado. De maneira geral, a própria estruturação dos casos tem um ar operístico: os três dias que temos para provar a inocência de nosso cliente podem representar três atos.

Em conclusão, Ace Attorney parece ter amalgamado muito bem alguns elementos presentes nas óperas e criado algo original. A relação narrativa com a música é o maior ponto comum entre essas produções tão separadas pelo tempo.

Esta foi apenas uma breve reflexão que procurou unir um pouco as obras e comentar sobre um dos aspectos mais importantes dos queridos advogados da Capcom. E você, caro leitor? Qual sua melodia favorita de Ace Attorney? Diga nos comentários abaixo!

Revisão: Vinícius Rutes

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