Análise: Travis Strikes Again: No More Heroes (Switch) e a crise nos infinitos Sudaversos

Retorno de Travis Touchdown é impecável na construção de sua narrativa nonsense, mas fica muito aquém no gameplay — e o pior: o próprio jogo sabe disso e debocha da situação.

em 07/04/2019
Durante a conferência que apresentou o Switch ao mundo, Suda51 subiu no palco e avisou que a próxima aventura de Travis Touchdown seria no então vindouro console da Nintendo. Embora pensássemos que se tratava de No More Heroes 3, o retorno do emblemático assassino se deu em uma aventura bem mais enxuta, quase que um spin-off. Dessa forma, Travis Strikes Again: No More Heroes (Switch) está muito longe de ser uma verdadeira sequência que seria responsável por fechar uma já icônica trilogia.


Isso, no entanto, não impediria o título de ser ruim, certo? Jogos paralelos podem ter sua qualidade e serem responsáveis por pavimentar o eventual lançamento de um jogo mais graúdo e oficial. Infelizmente, não é o que aconteceu com Travis Strikes Again. Embora se sustente na proposta reduzida de contar um capítulo mais íntimo da vida de Travis Touchdown — o que, narrativamente, ele o faz muito bem —, ele na prática ficou completamente aquém das expectativas, mesmo que elas já não fossem muito boas, para início de conversa.

Não é só Travis que ataca novamente

Um dos verdadeiros trunfos de TSA é o retorno de Suda51 na direção geral. Enquanto o designer ficava restrito a outros cargos de supervisão nos últimos jogos da Grasshopper Manufacture, como Lollipop Chainsaw (X360/PS3), Let it Die (PS4/PC) e até mesmo No More Heroes 2: Desperate Struggle (Wii), aqui ele assume a principal função criativa de um jogo pela primeira vez desde o primeiro No More Heroes (Wii). Assim, é como se Travis Touchdown e Suda51 fizessem esse retorno de mãos dadas.



Na prática, Travis Strikes Again conta com aquela que provavelmente é uma das mais intrigantes histórias de Suda, conhecido por seus emaranhados enredos mirabolantes. A premissa básica é que Badman, cuja filha, Bad Girl, foi morta por Travis Touchdown no primeiro jogo, quer vingança. Nessa jornada, ele sai em busca do assassino weaboo e o encontra vivendo isolado num trailer. No meio da luta, o console experimental chamado Death Drive Mk II é ativado e draga os dois para dentro dos poucos jogos desenvolvidos para o aparelho.

A dupla acaba descobrindo que o indivíduo que coletar todas as seis Death Balls — o nome dos cartuchos do Death Drive — poderá ter um desejo realizado. Enquanto Badman tem uma intenção sincera de ressuscitar sua filha, Travis é um gamer ávido e compulsivo — sua vida não estará completa caso perca a oportunidade de jogar tamanhas raridades. Dessa forma, surge a parceria improvável entre os dois.



A partir daí, Travis Strikes Again assume uma estrutura alternada. Os momentos de gameplay hack and slash são intercalados por longas cutscenes cuja estética é derivada dos text adventures baseados em DOS, populares nos anos 80. É nelas que o potencial narrativo de Travis Strikes Again assume toda sua glória. Os diversos cenários não são jogáveis de forma propriamente dita — afinal, não passam de texto na tela. Entretanto, apesar de causar estranhamento pela extensão considerável de cada um, a saga textual de Travis atrás das Death Balls é verdadeiramente instigante.

De fato, essas longas cinemáticas não são convidativas e os jogadores que se sentirem motivados a pular todo esse lenga-lenga não irão perder nada realmente substancial. Entretanto, é válido ressaltar que os mais insistentes (e pacientes) que se prezarem a prestar atenção no enredo irão se impressionar com uma intrincada narrativa que reconta a origem do Death Drive — relacionada a um projeto do governo americano que envolvia a criação e clonagem de super-soldados.



Além disso, essas sequências textuais são um deleite para qualquer fã de longa data não só de No More Heroes, mas da própria Grasshopper Manufacture, visto que as várias histórias dessa visual novel fazem referência a outras obras do estúdio, como The 25th Ward: The Silver Case (Mobile/PC/PS4), Flower, Sun and Rain: Murder and Mystery in Paradise (DS) e Killer is Dead (X360/PS3), implicando que todas elas se passam num mesmo universo compartilhado.

“Travis, escute! Os jogadores esperam um game de ação, não uma carrada de texto!”

Ao fim de cada uma das aventuras em texto, um novo estágio é liberado para ser jogado no Death Drive. Embora não se tratem de referências escrachadas e claras, é interessante como cada um representa um período ou um estilo presente na história dos games. Funcionando como uma espécie de homenagem, é notável como esses títulos desse console fantasma experimental têm a sua duração baseada no tempo de jogo padrão dos jogos antigos — entre uma hora e meia a três horas —, mas que era artificialmente estendida através da dificuldade e arquitetura que promovia a repetição de tarefas.

O primeiro jogo do Death Drive ao qual Travis tem acesso é o Electric Thunder Tiger II. Nele, a dupla de protagonistas é materializada na Electric Speed City e precisam reativar a usina de força, salvando a cidade e seus cidadãos de um frio de -20° célsius — um roteiro simplista e brega digno de um beat’em up oitentista clássico. A jogabilidade, portanto, é simplesmente ir avançando pelos estágios até chegar no chefão final, Electro Triple Star, o protagonista do primeiro Electric Thunder Tiger, que só aceita o embate pois, segundo as palavras do próprio, precisava fazer jus ao título de “jogo de ação” atribuído ao seu game.



A segunda Death Ball contém um jogo chamado Life is Destroy, cujo gameplay são várias fases bem curtas. O jogador, no controle de Travis, precisa resolver alguns quebra-cabeças que reorganizam as desorganizadas ruas da cidade que levam até mansões onde a jogabilidade volta ao estado original como foi vista em Electric Thunder Tiger II. Ao fim, encontramos Mr. Doppelganger, mais um chefão.

Coffee & Doughnuts é o terceiro jogo de Death Ball ao qual Travis ganha acesso. A jogabilidade desse se torna um pouco diferente em relação aos anteriores, visto que a movimentação se dá horizontalmente, como num sidescroller. Nele, os personagens surgem em uma mansão que dá acesso a diferentes cenários cujo design é o de um jogo de plataforma. Superando-os, um mistério envolvendo o chefão, Brian Buster Jr, vai se tornando mais claro aos poucos.



Na sequência, Travis e Badman invadem Golden Dragon GP. Tratando-se de um jogo de corrida, o jogador só consegue avançar nele caso vença cada um dos circuitos — inspirados pela estética de Tron — até enfrentar o chefão Smoking King. A estrutura dessa Death Ball é interessante porque ela consegue alternar as corridas com os combates na justificativa de que os personagens precisam encontrar peças cuja finalidade é aprimorar o veículo para as disputas.

Inspirado por Asteroids, do Atari, Killer Marathon é o quinto game do Death Drive. A questão é que ele se trata de uma bootleg de um título jamais finalizado por sua equipe de produção. Dessa forma, Travis sai em uma busca pela sexta Death Ball: Serious Moonlight.



Apesar de a história de Travis Strikes Again descrevê-lo inicialmente como um RPG tradicional na mesma veia de Dragon Quest, ao inseri-lo no console, Serious Moonlight logo dá lugar a outro jogo chamado Damend: Dark Knight, que foi desenvolvido no lugar do original porque realização era impossível devido a aspectos técnicos. Considerando que Damned se vende como uma sequência fictícia do Shadows of the Damned (X360/PS3) da Grasshopper, nota-se que essa ideia é uma alegoria do próprio Suda em relação ao que ocorreu com Kurayami, um RPG de terror psicológico que deu lugar à aventura de Garcia Hotspur em busca de sua amada Paula.

Por fim, coletando essas seis Death Balls, uma sétima se torna disponível e transporta os (não mais) heróis do jogo ao quartel-general da CIA em um estágio desnecessariamente longo e arrastado, mas que tem seus pontos altos por fazer referência direta a toda paranoia de Hotline Miami (Multi).



Com exceção de Life is Destroy, são todos jogos cujo conceito é minimamente intrigante, visto que cada um deles conta não apenas com uma cutscene introdutória, mas também com um bônus em forma de uma scan das páginas de uma revista de games completamente legível e com informações extras sobre os títulos. Na prática, já há alguns problemas de level design em Coffee and Doughnuts e a fase final da CIA, pois se mostram desnecessariamente extensos.

Some isso às camisetas colecionáveis com estampas de jogos indie famosos, como Papers, Please (PC), Mother Russia Bleeds (Multi), Hyper Light Drifter (Multi) e outros. Às quebras de quarta parede frequentes nos diálogos. Às referências implícitas a outros jogos e histórias da cultura pop, como quando os personagens conseguem um item e repetem a pose de Link, da série The Legend of Zelda, ou quando eles são materializados nus dentro dos jogos como o Exterminador do Futuro. A narrativa de Travis Strikes Again como um todo é extremamente minuciosa nesse tipo de detalhe e a percepção desse tipo de coisa é verdadeiramente gratificante.


“Este jogo é desenvolvido na Unreal Engine 4: o nobre motor de jogo com pedigree da Epic Games”

O problema realmente imperdoável de Travis Strikes Again é justamente o que mais pesa contra um jogo de videogame: gameplay. Tudo bem mudar o sistema de batalha dos títulos anteriores. Tudo bem em torná-lo simplificado. A inclusão de poderes customizáveis, que podem ser desbloqueados ao coletar chips dentro dos jogos de Death Drive, foi implementada de forma convincente e funciona muito bem. O principal porém é que a jogabilidade é cansativa, repetitiva e travada.

Os controles são limitados a dois tipos de golpes: um pesado que pode ser lentamente sequenciado ou vários leves que consomem muito rapidamente a bateria do sabre de luz de Travis. Essa simplificação grosseira da jogabilidade dos títulos anteriores impede a formação de estratégias contra as ondas de inimigos comuns que mais incomodam pela quantidade do que pela qualidade em si.



Além disso, a ausência de um combo simples que poderia ser reproduzido com uma sequência básica de botões pesou muito negativamente na experiência final do jogador, que irá se ver repetindo infinitamente o mesmo processo moroso e tedioso de avançar contra os inimigos indiscriminadamente sem precisar pensar. Por mais que haja uma gama considerável de chips que incluem poderes diferentes que vão desde recuperar vida a arremessar os inimigos longe, muitos deles carecem de um feedback convincente que faça a sua utilização ser bem mais compensatória em relação aos mais simples e diretos.

A posição da câmera, em uma esmagadora maioria das vezes, é muito pouco amigável para quem está jogando no modo portátil. Em várias situações, ela fica muito longe do personagem na tela e torna-se difícil entender se ele está realizando os comandos inseridos pelo jogador ou simplesmente apanhando indefeso e perdendo a sequência de combo.



A cereja do bolo acaba indo para o visual completamente sem sal. O próprio título paparica tanto a Unreal Engine que toda essa bajulação acaba agindo contra o tal motor de jogo. Fala sério, tanto a Unreal quanto o próprio Switch podem fazer muito mais do que esse aspecto gráfico quadradão.

Em tempo: o jogo conta com dois pacotes DLCs. O primeiro, intitulado Black Dandelion e disponível no lançamento do game base, adiciona a Shinobu como personagem jogável, uma cutscene que age de prólogo para o game — que inclusive referencia Killer7 (GC/PS2) — e uma text adventure adicional focada no Badman. O segundo conteúdo para download, Bubblegum Fatale, chega no dia 17 de abril e trará a Bad Girl como controlável, um novo cenário para a aventura textual de Travis e a versão completa de Killer Marathon.


Siga o Ritmo do Punk

De certo modo, Travis Strikes Again se assemelha muito aos primeiros jogos dirigidos por Suda51: uma jogabilidade não mais do que pífia cujo principal atrativo é a história. Por mais que ela aqui seja realmente fascinante, no instante em que você se propõe a produzir um videogame, o mínimo a ser feito é um gameplay conciso, visto que é a característica que o diferencia de outras mídias — caso contrário, a mesma narrativa poderia ser contada no cinema sem problemas, por exemplo.

Isso, na verdade, é uma verdadeira pena. Ele poderia continuar com exatamente a mesma estrutura e estilo (além dos nuances que estão sim à altura da série e outros trabalhos de qualidade da Grasshopper Manufacture) e ainda não seria problema algum que TSA não seja No More Heroes 3. Se o gameplay fosse minimamente viciante (e olha que não precisa nem ir muito além disso) o game com certeza seria muito bem-vindo. Surfar na onda dos jogos indies — que, de fato, são em sua maioria de qualidade questionável, sendo aqueles que atingiram sucesso uma parcela mínima desse mercado estupidamente vasto — não é desculpa para esse trabalho preguiçoso.



Assim, esse retorno capenga de Travis Touchdown é um verdadeiro produto de uma empresa cujo slogan é “O Punk não está morto”. Sabe quais são as principais características do punk como estilo musical? Composições simplórias, mal-acabadas e pouco lapidadas, desprovidas de qualidade técnica cujos mesmos acordes são repetidos indefinidamente à exaustão. Pertinente.

Prós:

  • A estrutura geral, a história e os diálogos;
  • Múltiplas referências não apenas a outros trabalhos de Suda, mas a uma gama diversa de vários outros jogos independentes;
  • Detalhes pequenos que fazem a diferença, como as scans das revistas e as cutscenes introdutórias de cada jogo;
  • Pequenas nuances que tornaram No More Heroes a série brilhante que ela foi já no Wii;
  • Sistema de chips que dão poderes aos personagens;
  • Electric Thunder Tiger II, Golden Dragon GP e Damned: Dark Knight.

Contras:

  • Jogabilidade cansativa, repetitiva, travada, morosa, e tediosa;
  • Life is Destroy, Killer Marathon e a fase final da CIA;
  • Câmera não colabora;
  • Visual ofensivo ao que o Switch já produziu até aqui;
  • Falta de equilíbrio nos poderes dos chips.
Travis Strikes Again: No More Heroes — Switch — Nota: 5.0
Análise produzida com cópia física adquirida pelo próprio redator

É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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