Octopath Traveler (Switch) e o resgate dos vilões narrativos nos clássicos JRPGs

Acostumado a viver do passado, o gênero que sempre foi escravo da tecnologia e dos valores de sua época, finalmente se permite explorar o presente.

em 07/11/2018

Nos anos 90, a Square fez sua fama popularizando o genêro dos JRPG por todo mundo com títulos icônicos como Final Fantasy (NES), Dragon Quest (NES) e Chrono Trigger (SNES). Desde então, vemos a Square Enix celebrar todo o seu legado com diferentes jogos que glorificam sua era de ouro, como foi com Bravely Default no Nintendo 3DS e novamente com o recente Octopath Traveler para o Nintendo Switch.

Nostalgia refinada

O game foi completamente idealizado para homenagear a história da casa e mostra compreender plenamente o gênero em que habita. O esforço para recriar os elementos mais amados de seus clássicos com precisão quase milimétrica é louvável e a experiência trazida pelo título é como um abraço quentinho para os fãs de longa data. Apesar de apresentar novidades para aproximar a obra dos padrões das novas gerações, as adições vêm mais para reforçar as ideias tradicionais, sem nunca bater de frente com as expectativas.

No novo jogo, temos um ambiente tridimensional, mas as texturas e os personagens esbanjam uma charmosa pixel art relembrando os gloriosos 16-bits do Super Nintendo. O sistema de combate se renova com o Boost Mode, mas aplica fielmente os moldes de um sistema tradicional de batalhas por turno. Entre essas e outras, fica evidente que na busca de repetir os acertos de outrora, Octopath não tem medo de repetir também os erros, tudo em prol de um sentimento fácil de nostalgia.
Octopath sabe aproveitar o passado para imaginar o futuro.
Enquanto esse argumento se mostra válido na parte majoritária do jogo, em sua história vemos uma abordagem completamente transgressora. Ao trazer oito caminhos distintos a se explorar, Octopath Traveler agrega muito mais do que liberdade ao título. Acima de tudo, ele rompe com uma falha narrativa histórica que persegue grande parte dos JRPGs: como esses games retratam o mal.

O Mal que assola o mundo

Todo personagem em um game é criado para desempenhar algum papel. Mesmo os NPCs mais inúteis estão ali para popular o mundo com pessoas triviais e desimportantes, o que desenvolve o mundo do jogo e o torna mais crível. Claro que com os vilões não podia ser diferente e, nos games, tradicionalmente, eles são pensados em função da jogabilidade ou da narrativa.

No começo da indústria, videogames não tinham histórias muito rebuscadas por quesitos técnicos e consequentemente os jogos estavam abarrotados de vilões em função da jogabilidade. Naquela época, as mecânicas eram muito restritas e os objetivos muito rasos, o que naturalmente refletia no tipo de vilão que era criado.


Eram tempos muito simples e toda motivação que um vilão precisava era sequestrar uma princesa ou a dominação mundial. Afinal, não estávamos ali para saber sobre os vilões. Francamente, pouco importava as motivações dos heróis também. As aventuras dos heróis e vilões já era bastante explorada em filmes e livros. A revolução trazida pelos jogos é que, pela primeira vez, podíamos viver nossas próprias aventuras.

Sendo assim, os vilões surgiam simplesmente como um obstáculo final para a nossa grandiosa odisséia. Eles não eram muito profundos, mas eram bastante difíceis. Os chefes sintetizavam o que havia de mais difícil nas mecânicas de seus games, trazendo um verdadeiro desafio final para o jogador. O vilão não se opunha exatamente ao protagonista do jogo, mas sim ao jogador por trás dele. Foi nessa onda que surgiram Bowser em Super Mario Bros. (NES), Dr. Wily em Mega Man (NES) e Ganon em The Legend of Zelda (NES).


Ficamos tão acostumados a pensar em vilões dessa maneira que quando surgiram gêneros que se propuseram a trazer histórias mais profundas e melhor trabalhadas, não se pensava duas vezes antes de meter um vilão em função das mecânicas. Foi assim com os primeiros JRPGs e essa mania se perdurou por toda era de ouro dos RPGs. Nessa onda, tivemos Chaos de Final Fantasy, Lavos em Chrono Trigger e Culex de Super Mario RPG: Legend of the Seven Stars (SNES). Um reflexo direto desse estilo de vilões acabou se tornando outro grande paradigma nas narrativas de RPGs: os protagonistas vazios.

Jornada sem fim

Como um truque para estimular a imersão do jogador, muitos dos protagonistas que víamos nos jogos nessa época eram heróis silenciosos. A ideia era que os jogadores não conseguiriam se projetar em um personagem de personalidade muito forte e não era exclusiva dos videogames. Na literatura e também no cinema, havia uma certa epidemia de heróis que eram simplesmente um bastião da pura bondade.

Sem muitas motivações próprias, conflitos ou dilemas, esses heróis faziam sempre o que era certo e seu único objetivo era tornar o mundo um lugar melhor. Essa epidemia era um reflexo de uma estrutura bastante simples e muito copiada de se contar histórias que ficou conhecida como "A Jornada do Herói".


Estabelecida em 1949 pelo autor estadunidense Joseph Campbell em seu livro "O Herói de Mil Faces", a Jornada do Herói é uma lente bastante útil para identificar padrões no modo que contamos histórias através dos séculos. O autor traça diversos paralelos entre jornadas mitológicas de diferentes eras, desde os gregos, egípcios, até os cristãos, sendo bastante influente para várias obras que surgiram tempos depois, como Star Wars (1977).

Nas obras dos anos 80, a Jornada do Herói foi bastante utilizada para reforçar a ideia do que era considerado bom, corajoso e justo na época. Por consequência, esses acabam se tornando os traços marcantes de boa parte dos heróis tanto no cinema, quanto no mundo dos jogos. Tivemos então um grande emaranhado de heróis com características muito similares e que pouco se diferenciavam entre si, especialmente nos JRPGs que representavam valores muito rígidos da cultura japonesa.

Octo expansão de ideias

Octopath Traveler com uma única decisão bate de frente com tudo isso. Ao trazer oito heróis com suas histórias próprias, os produtores se viram obrigados a pensar em um modo de diferenciar os personagens entre si, uma vez que apenas trazer diferentes classes não iria funcionar. Logo, tornou-se necessário repensar o jeito que eles abordariam a história. Se em todos outros aspectos do jogo, as novidades complementam a tradição, os novos elementos de história quebram com anos de uma construção um tanto acomodada de narrativa.

Cada protagonista deste game usa os estereótipos que associamos a sua classe a seu favor para abordar alguma questão interessante e trabalhar melhor sua motivação. Além desses motivos serem, em geral, bastante destoantes do que estamos acostumados, eles permitem construir personagens multidimensionais muito bem embasados que são um reflexo direto do seu passado.
Aqui entendemos como Primrose consegue se sujeitar a qualquer coisa para conseguir o que quer sem peso na consciência.

Olberich, por exemplo, é o paladino da equipe e tradicionalmente em um JRPG teria um arco sobre nobreza e lealdade. Entretanto, sabendo dessas expectativas, os roteiristas te convidam a imaginar o que aconteceria se sua nobreza e lealdade fossem bruscamente tirados dele? De repente, uma história que serviria apenas para reforçar valores sociais se torna uma jornada de autoconhecimento de uma pessoa em busca de um novo propósito na vida.

Ao se afastar da doutrinação moral, o game dá espaço a um personagem que dialoga bem com as motivações de jovens reais de diversas partes do mundo. Os dilemas dos personagens deixam de ser fantasias morais e se tornam histórias mais humanas, mais pessoais. Enquanto antes tínhamos histórias mirabolantes onde o destino do mundo estava em perigo, mas com pouquíssima profundidade, o que está em jogo agora é o futuro de um indivíduo e o que isso acarreta.
Muitos dos questionamentos levantados não valem apenas para os personagens, mas também para nós mesmos.


Saímos da influência de grandes guerras, em que o destino do mundo estava realmente ameaçado pela ameaça nuclear, para uma era mais pacífica. Podemos hoje deixar de procurar o inimigo no outro e enfrentar os inimigos que vivem em nós mesmos. Temos finalmente tempo para resolver nossos conflitos pessoais e crescer como seres humanos e é imperativo que isso reflita nas nossas produções artísticas.

Octopath Traveler entende que homenagear as obras do passado, não quer dizer recriar uma cultura que não é mais compatível com o momento político em que vivemos e assim consegue mais uma vez evoluir um gênero que luta para superar gigantes do passado. Finalmente é a vez das pessoas mais comuns que tem problemas mais reais. É a jovem mercadora que quer trilhar o próprio caminho e é confrontada com práticas econômicas abusivas que desafiam a sua visão de mundo. É uma jovem que, após ser desapontada pelo sistema, se sujeita a caminhos obscuros em busca de justiça. Ambas histórias mostram o poder de questionar a validade do sistema vigente e divergir se necessário, algo que é aplicado diretamente em Octopath.
É preciso coragem para reconhecer seus privilégios e seu lugar na luta contra as injustiças em sistemas corruptos e desiguais.


Além de ser um tema recorrente no enredo do jogo, a digressão faz parte de uma nova onda de games que tentam revitalizar gêneros inteiros. Os JRPGs acabaram presos numa estagnação que é reflexo direto de uma sociedade acomodada. Não é muito comum, ou muito fácil, questionar o porquê por trás de tradições. Entretanto, há uma crescente descrença nas instituições em diversos lugares do mundo e um choque geracional entre uma geração que aceitava tudo e uma que tudo questiona. O resultado são games como Undertale, repensando a estrutura mecânica dos RPGs, e o próprio Octopath, que rompe com dogmas narrativos dos JRPGs.

Felizmente, o estrondoso sucesso do jogo mostra para a Square que uma narrativa mais experimental e complexa atrai público. Octopath Traveler é um jogo só, mas não será o último que se propõe a evoluir o modo como vemos a narrativa nos games. Com uma divisão dedicada a criar novos JRPGs para o Switch, podemos ficar tranquilos que muita coisa boa ainda está por vir nas mãos da Square Enix.
A batalha do mundo contemporâneo é entre crenças e ideias. Veremos como os jogos futuros irão explorar isso.
Revisão: Pedro Franco
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Gabriel Mattos estuda Ciência da Computação e procura sempre estar em equilíbrio com a Força. Pode ser encontrado por aí especulando sobre os próximos lançamentos da Nintendo e da Playstation na GameBlast e no Twitter.
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