Desenvolvidos originalmente como jogos mobile pela japonesa Rideon — de Adventure Bar Story (3DS) —, a série Mercenaries Saga teve um histórico inconstante de lançamentos no Ocidente. O primeiro título a dar as caras por aqui foi o segundo capítulo da trilogia, lançado para 3DS, Android e iOS em 2015. No ano seguinte, Mercenaries Saga 3 chegou até essas bandas do globo apenas para o portátil da Nintendo, deixando de lado os celulares.
Assim, a coletânea Mercenaries Saga Chronicles não apenas marca a primeira vez em que o título de estreia da franquia recebe sua versão ocidental, mas também reúne no Switch a trilogia completa em edição definitiva remasterizada. Lançado em formato digital em fevereiro de 2018 e recebendo uma edição em mídia física em setembro, o pacote visa recriar um pouco da experiência dos SRPGs 16-bits. Poderiam esses títulos de pequeno porte originados no ambiente mobile fazer jus aos clássicos que pretendem referenciar?
Mercenários, intrigas políticas e pedradas
Todos os três jogos que compõem o pacote dividem uma semelhança muito próxima entre si, tanto nos aspectos audiovisuais quanto em termos de jogabilidade. Perpassando toda a trilogia está a inspiração direta nos grandes clássicos do gênero SRPG, Tactics Ogre (Multi) e Final Fantasy Tactics (Multi). Da paleta de cores aos detalhes do sistema de batalha, passando pelos temas morais abordados pela trama, a referência ao trabalho definidor do subgênero capitaneado por Yasumi Matsuno é explicitamente abraçada, sendo que não seria injusto dizer que Mercenaries Saga tem ares de tributo em relação aos seus antepassados noventistas.
Nesse sentido, os enredos apresentados ao longo da trilogia constroem cenários reminiscentes do mundo fictício de Ivalice e suas adjacências. Ou seja, conflitos em larga escala entre impérios corruptos, organizações paramilitares e cultos demoníacos, abordados da perspectiva de um bando humilde de mercenários que apenas quer “garantir o seu” em meio a essa loucura toda. Muita manipulação política, reflexões morais, traição e heroísmo “cinza” pontuam as tramas da saga.
Ainda que de forma não tão brilhante e menos polida do que nas produções de Matsuno, tratam-se de roteiros envolventes que trazem o charme e a simplicidade conhecidos desse misto de fantasia, mangá e Star Wars. A trilogia se passa em um mundo compartilhado, narrando momentos e perspectivas diferentes das tramas envolvendo o continente de Fornea e suas proximidades.
Mercenaries Saga: Will of the White Lions narra as crônicas do grupo de mercenários conhecido como White Lions. Liderados pelo preguiçoso Leon, o grupo de seis renegados procura garantir sua subsistência lutando no conflito iminente entre o pequeno reino de Mondoa e o expansivo império Flare. Mercenaries Saga 2: Order of the Silver Eagle traz para o foco o estóico Claude e seus Silver Eagles, e explora os mistérios místicos e conspirações envolvendo o passado do antigo reino ocidental. Encerrando a trilogia, Mercenaries Saga 3: Gray Wolves of War traz o carismático Marion e seu bando Gray Wolves trabalhando para o regimento corrupto de Coronea no reino de Kirialos na contenção de uma insurgência popular violenta contra a invasão de Flare.
Toda a narrativa se dá de forma bastante econômica, através de cenas curtas realizadas com os sprites in-game e se inserem nos intervalos das batalhas da história, desenvolvendo a trama principalmente através dos diálogos. Enquanto minha primeira impressão foi a de se tratar de uma produção um tanto genérica no quesito, me surpreendi positivamente com a construção dos personagens e do enredo ao longo de todos os jogos. Nada revolucionário ou que se encontre no nível das grandes produções do gênero — mas, para um jogo desse porte, o enredo cumpre seu papel e não falha em captar a atenção do jogador e manter a coisa sempre interessante.
O xadrez da guerra
Se as sequências do enredo não costumam se alongar para além do estritamente necessário, é tudo por um bom motivo: o prato principal de Mercenaries Saga é, sem dúvida, seu sistema de batalhas. Aos já devidamente iniciados no subgênero, uma limitação que ao mesmo tempo pode trazer tranquilidade: não temos nada de muito novo nessa frente.
Sob uma abordagem bem direta e sem exageros, a trilogia busca captar o essencial de Tactics Ogre. A batalha se dá em mapas de tamanho variável, sob perspectiva isométrica e com o cenário organizado em esquema de grade. As unidades inimigas encontram-se já dispostas de acordo com cada cenário pré-determinado, e a tropa do jogador é organizada em pontos de extração específicos (normalmente agrupada em uma área inicial comum).
A batalha se organiza em turnos: primeiro movem-se todos os personagens do jogador e, a seguir, todos os personagens da CPU. O jogador pode escolher livremente a ordem dos turnos de seus personagens. Cada personagem pode se mover e efetuar uma ação, mas as ações devem se dar necessariamente nessa ordem: nada de atacar para depois recuar, por exemplo. Qualquer ação — ataque, uso de skill, uso de item ou defesa — encerra a vez do personagem.
Até que seja efetivada a ação, é possível reiniciar o turno do zero apertando B, função essencial para se experimentar e ir se habituando com as possibilidades diversas de ataque. A interface durante as batalhas é bastante clara e oferece todas as informações necessárias. Antes de cada ataque, uma prévia do dano a ser infligido, probabilidade de acerto e do respectivo contra-ataque ajudam no planejamento das pelejas.
A capacidade de movimentação por turno varia de acordo com o stat individual Move. As elevações e declives também têm parte central na organização da batalha, sendo que a capacidade de escalagem é representada pelo stat JM (jump movement). Ao final de cada movimentação, é necessário selecionar também o posicionamento do personagem, que interfere na etapa de defesa. Ataques frontais têm mais chances de serem defendidos e causam menos danos do que ataques laterais, enquanto os ataques pelas costas são os mais danosos.
O papel central dado ao posicionamento das unidades garante que as batalhas escapem do “mata-mata” e se tornem a legítima experiência estratégica. Turno a turno, a forma de se aproximar dos inimigos e de dispor suas próprias unidades é tão determinante quanto a escolha dos equipamentos, classes ou skills a serem levados para a guerra.
Por falar em skills, o sistema de MP também se baseia no visto originalmente em Tactics Ogre: as unidades iniciam com uma quantidade reduzida (quase zerada) de MP, e vão acumulando a valiosa energia mágica a cada turno, de acordo com as ações efetuadas e os stats individuais.
Este detalhe faz toda a diferença no ritmo das batalhas: nada de ofensivas abertas, já que as habilidades mais poderosas (e, portanto, custosas) não estão em jogo num primeiro momento. Ao mesmo tempo, no longo prazo a opção garante o alto nível dos confrontos, já que, com o MP tecnicamente infinito, o uso de skills permanece em alta mesmo nas disputas mais alongadas. Nada de terminar um combate épico na base do empurra-empurra!
Ou seja, antes de partir para o massacre, é preciso sempre tomar o tempo para carregar o bendito MP e planejar a melhor maneira de alcançar a passos curtos aquele arqueiro ordinário que inicia a batalha em cima de um telhado. Desta forma é que algumas estratégias clássicas de Ogre fazem seu retorno aqui: iniciar a batalha distribuindo poções de mana (muito mais importante do que as poções de vida, acredite!); organizar iscas seguidas de emboscadas contra os inimigos; bate-bolas elaborados entre arqueiro, mago e o personagem de combate corpo-a-corpo visando evitar os temidos contra-ataques, e por aí vai.
Com a ampla variedade de habilidades disponíveis, o uso bem pensado de buffs e debuffs, efeitos de status, fraquezas e resistências e (muitas) magias de cura fazem toda a diferença na dificuldade padrão (Normal) do jogo. O modo Easy, por sua vez, traz uma introdução bem balanceada para iniciantes do gênero e, por não deixar de lado a importância do pensamento estratégico, pode ser uma boa pedida para quem deseja uma progressão mais rápida de jogo, sem grandes perdas em termos de jogabilidade. Aos que gostam de um bom desafio, além da opção de se jogar no Normal sem fazer uso de grinding (boa sorte!), duas novas opções de dificuldade podem ser habilitadas para o modo New Game+.
Luta de classes
De modo geral, os combates na trilogia variam em termos de desafio e extensão. Há uma boa gradação de dificuldade e complexidade em todos os jogos, o que deve garantir que o novato não se sinta perdido em meio às informações. O bom balanceamento das classes e habilidades do jogo fazem com que mesmo as batalhas mais alongadas dificilmente caiam no marasmo. Contanto que o jogador não se incomode com o ritmo lentificado típico dos sistemas de batalhas por turnos, a jogabilidade diversificada e o bom nível de desafio são certos de mantê-lo ligado por horas e mais horas a fio.
Se engana quem pensar que a estratégia está restrita apenas ao momento da batalha. Como é característico do subgênero, a construção dos personagens ocupa um papel central na experiência. Após cada combate, o jogador tem acesso a um menu unificado de onde tem acesso à loja, customização de personagens, missões extras e de história. Um esquema bastante simplificado — não há nem ao menos um mapa representando os capítulos do enredo — mas que cumpre seu dever de abreviar um elemento que é secundário na produção.
Semelhantemente ao sistema visto em Final Fantasy Tactics, a progressão dos personagens se dá através da obtenção de de dois tipos de ponto de experiência: EXP, para a progressão linear de níveis do personagem, e SP, para a aquisição de skills. Cada personagem inicia com uma classe (job) fixa, sendo que a progressão de classes se dá em uma “árvore de classes” que se ramifica duas vezes. Nos níveis 10 e 20, os respectivos tiers superiores de classes são habilitados, sendo que cada personagem conta assim com seis jobs tradicionais e dois especiais, os quais requerem a obtenção de ítens específicos para serem habilitados.
Cada classe possui cinco skills, as quais normalmente (mas nem sempre) se dividem em quatro ativas e uma passiva, e que podem ser compradas e aprimoradas com o uso de SP. Trocando-se de classe, as skills anteriormente aprendidas continuam disponíveis para aprimoramento, e tanto as ativas quanto as passivas permanecem habilitadas para serem utilizadas pelo personagem.
Um sistema diferencial que adiciona muito à experiência é a possibilidade de se escolher, a cada uso, o level da skill a ser utilizado naquele momento. Isso ajuda não apenas a dosar melhor o consumo de MP de acordo com a necessidade, mas também torna a distribuição de SP um processo muito mais recompensador e sem estresse, já que o jogador não precisa se preocupar em exagerar no investimento em determinada skill e, com isso, acabar travando-a atrás de um custo muito elevado de MP.
Assim, a progressão se dá através de uma ramificação cumulativa de habilidades, com a classe atual determinando somente os valores-base e o crescimento dos stats bem como os itens equipáveis do personagem. Deixando de fora a possibilidade de criação de unidades genéricas, o jogo traz uma progressão guiada de personagens que acaba sendo bastante linear se comparada, por exemplo, com o que já foi visto nas séries Final Fantasy Tactics ou Disgaea.
Após atravessar a trama de um dos games, torna-se possível iniciar um novo ciclo de jogo (recomenda-se fortemente que seja em um slot diferente do original), no qual duas novas opções de dificuldade se tornam disponíveis: Hard e Maniac. Para ajudar com o desafio elevado, vários elementos da jogatina anterior são transferidos para o novo save, ainda que os níveis dos personagens e a composição da equipe voltem ao status inicial.
Sob a camada inicial de simplicidade e linearidade, o modo história de cada um dos três games traz, além de rotas alternativas na própria narrativa, diversos objetivos extras para os aficcionados investirem ainda mais tempo: a coleção de equipamentos raros e itens escondidos em cada mapa, incluindo os coletáveis principais, os Puzzle Pieces, que funcionam como as Mini Medals de Dragon Quest, servindo de moeda de troca por equipamentos ultra-raros. É batalha isométrica que não acaba mais: não vai faltar oportunidade para se reunir a quantidade necessária de SP para transformar cada um de seus mercenários em um semi-deus das batalhas táticas!
Uma experiência de nicho
A trilogia Mercenaries Saga traz uma estreia forte da Rideon no ramo dos RPGs táticos, conseguindo escapar de ser um mero pastiche e se encontrar seguramente à altura de uma efetiva homenagem ao clássico sui generis Tactics Ogre. Se a referência direta vem às custas de deixar de lado funções e melhorias com as quais ficamos acostumados ao longo do desenvolvimento do subgênero — como, por exemplo, na simplicidade 16-bits dos sprites e na ausência de uma opção de rotação de câmera —, essa partilha de limitações é aproveitada de forma inspirada o suficiente para que se torne um ponto a favor do título, que parece visar agradar especialmente o veterano em busca dessa experiência original sem alterações.
Trata-se de um tributo indie que, ainda que não supere sua musa inspiradora (como Stardew Valley fez em relação a Harvest Moon, por exemplo), não se confunde com uma cópia barata e não faz feio se colocado lado a lado com seus ídolos. Mesmo que falte algo do refinamento técnico e da profundidade da narrativa e ambientação da obra-prima da Quest Corporation, e ainda que se abstenha de tentar quaisquer inovações mais profundas, a experiência de jogo é sólida, diversificada e tão viciante quanto os melhores títulos do gênero podem ser.
Ao mesmo tempo, trata-se de um jogo com grande potencial para ser uma boa porta de entrada para quem ainda não conhece o gênero. Enquanto o recém-lançado God Wars: The Complete Legend (Switch) preza por uma reimaginação 32-bits do formato, mirando nos clássicos do subgênero do primeiro PlayStation, Mercenaries Saga resgata com precisão a fórmula 16-bits original naquilo que ela tem de mais essencial e, de quebra, traz ambientação, temática e visuais condizentes com o estilo cunhado por Yasumi Matsuno.
Muito acessível para se iniciar e com profundidade análoga à de qualquer título de respeito do subgênero, o game traz camadas de conteúdo que devem agradar aos mais variados playstyles. Uma boa pedida especialmente aos interessados por um SRPG com mecânicas e audiovisual retrô, e aos fanáticos por Tactics Ogre e Final Fantasy Tactics que são abertos a uma revisitação despreocupada desses mundos. Com três jogos longos que contam, cada qual, com uma miríade de conteúdos opcionais para apetecer aos completistas, o pacote é um ótimo negócio em termos de centavos por horas de jogo.
Prós
- Sistema de batalha acessível, envolvente e complexo recria muito bem a experiência dos clássicos do subgênero;
- Grande variedade de personagens, habilidades e classes;
- Centenas de horas de conteúdo ao longo de três títulos;
- Enredos e personagens interessantes;
- Modo New Game+ ajuda a aumentar o fator replay;
- Coesão audiovisual garante aos jogos um grande charme retrô;
Contras
- Ausência de opção para configuração de controles (os direcionais são um pesadelo para quem está acostumado de outro jeito);
- Menus de customização de personagem com a navegação pouco otimizada;
- Não poder rotacionar a perspectiva de câmera dificulta a visualização em algumas batalhas;
- Baixo frame rate não fica à altura do belo trabalho de sprites.
Mercenaries Saga Chronicles — Switch — Nota: 7.5
Análise produzida com cópia digital cedida pela PM Studios