Ōkami (Multi): por trás da criação da arte em forma de jogo

Com a versão HD chegando ao Nintendo Switch, contamos os detalhes da criação de um dos títulos mais aclamados e injustiçados do mundo dos games.

em 29/07/2018

Se há um jogo completamente injustiçado nesse imenso mundo dos videogames, esse é Okami. A incrível jornada de Amaterasu, lançada originalmente para o PlayStation 2 em 2006, ganhando uma versão para Nintendo Wii em 2008, arrebatou aclamação da crítica especializada. Porém, a jornada original do Clover Studios, divisão da Capcom, não teve o mesmo sucesso nas vendas.

Após um hiato de 10 anos, a aventura vai retornar a um console da Nintendo e em alta definição. Como Okami HD será lançado para Nintendo Switch em 9 de agosto, decidimos relembrar as inspirações e detalhes da criação desse incrível jogo que é a mais pura arte.

O cara que criou Okami

Hideki Kamiya nunca escondeu seu gosto por games. Influenciado por um vizinho, se apaixonou por videogames ao colocar as mãos no Epoch Cassette Vision, console lançado no Japão em 1980. Mas foi com um Famicom, seu primeiro console, que a inspiração para trabalhar com games nasceu. Como revelou em um Iwata Asks, foi buscando novidades sobre o videogame 8-bit da Nintendo que acabou lendo entrevistas de Shigeru Miyamoto e de Masanobu Endo, criador de Xevious, na publicação japonesa Famicom Computer Magazine e, consequentemente, decidiu que queria trabalhar com games.

Apesar de ter conseguido seu primeiro emprego no mercado de games na Namco, foi quando entrou na Capcom em 1994 que começou a trabalhar como designer. Na companhia, Kamiya fez parte da equipe responsável pela série Resident Evil e foi diretor de Devil May Cry. Entretanto, foi com o remake do primeiro Resident Evil para GameCube que o designer floresceu a ideia de criar um jogo inédito. Kamiya ficou impressionado com a tecnologia que a Capcom criou no remake, com recursos visuais que representavam situações realistas. Ele queria aproveitá-la para desenvolver algo totalmente oposto, um mundo brilhante e bonito.

Durante a era GameCube, a Nintendo e a Capcom firmaram uma parceria. Chamada de Capcom Five, o produtor Shinji Mikami ficaria responsável por criar jogos exclusivos para o console cúbico. Desse acordo de exclusividade surgiram P.N.03, Viewtiful Joe (que Kamiya inclusive atuou como diretor), Killer 7 e Resident Evil 4. O quinto título, um shoot'em up chamado Dead Phoenix acabou cancelado. Todos os jogos, com exceção do P.N.03, acabaram sendo relançados posteriormente para o PlayStation 2 devido às vendas abaixo da expectativa da Capcom no GameCube. O mais impactante, porém, seria Resident Evil 4.
A exclusividade de cinco títulos da Capcom para o GameCube
não foi concluída e nem cumprida
O jogo de terror, que inicialmente contava com Kamiya como diretor, foi um passo audacioso na série, uma mudança de perspectiva com mais ação e menos survival horror. Entretanto, por muito tempo, Mikami reforçou que Resident Evil 4 seria exclusivo do GameCube, chegando a afirmar que “cortaria sua cabeça” caso fosse lançado para PlayStation 2. A versão para o console da Sony daria trabalho, o jogo precisaria passar por adaptações pois o GameCube tinha um hardware superior. Entretanto, foi anunciada antes do lançamento da versão para o console cúbico, devido à pressão de acionistas da Capcom, algo que desagradou Mikami.

A relação entre Mikami e a Capcom foi abalada. O diretor pediu desculpas pela quebra da exclusividade e estava bastante descontente. Com isso, a companhia criou uma nova divisão chamada Clover Studios. Formado pela junção das palavras creativity lover (amantes da criatividade em inglês) e por membros responsáveis pelos jogos da série Viewtiful Joe, o estúdio seria responsável por desenvolver novas propriedades intelectuais para a Capcom. Mikami se uniu a Kamiya e ao produtor Atsushi Inaba para direcionar o novo estúdio ao primeiro grande projeto: Okami. Kamiya assumiu a direção e teria a chance de mudar a visão das pessoas que o viam como “o cara que fez Devil May Cry e Viewtiful Joe”. Ele queria ser conhecido como o cara que fez Okami.


O esplendor da natureza

O objetivo de Kamiya era criar um jogo que trouxesse um ambiente natural. A saudade de sua cidade natal e seu gosto pela natureza serviram como inspiração no primeiro projeto original do Clover Studios. A característica principal de Okami seria a ambientação na cultura japonesa, algo que até então ninguém tinha feito. Entretanto, o estúdio tinha dúvidas se o título teria apelo ao público ocidental. “Kamiya sentiu que seria ótimo se as pessoas fora do Japão jogassem esse jogo e se interessassem pela cultura japonesa”, revelou Inaba em entrevista ao IGN em 2007.

Apesar do visual de Okami ser impressionante até para os padrões de hoje, originalmente ele seria mais realista. Kamiya e sua equipe criaram um protótipo para avaliar o projeto sem ter ideia alguma de como seria a jogabilidade. Adicionaram um lobo branco correndo em um grande campo com árvores e flores brotando ao seu redor. E o que Kamiya achou desse teste de Okami? Uma bela… porcaria!



“Nosso primeiro teste foi incrivelmente chato de jogar", disse o diretor em entrevista ao 1Up. "Estávamos tão distantes que se transformou em um jogo de simulação — tinha hexágonos e árvores brotando. Era um lixo total." O Clover Studios estava lidando com dois problemas. Primeiro, o estilo gráfico fotorrealístico em 3D parecia não dar vida ao game que deveria retratar a natureza e, consequentemente, direcionava para o outro desafio: o hardware do PlayStation 2, console para qual Okami estava sendo desenvolvido, era limitado e não suportaria o nível de detalhes pretendido pelo estúdio. A solução veio de uma sugestão do designer da equipe de arte que recriou o protótipo com um estilo de pintura em pincel. A proposta agradou Kamiya e Inaba, e logo o estilo artístico inspirado nas aquarelas japonesas, como o sumi-ê e ukiyo-ê, foi adotado. Todos os personagens foram desenhados à mão em papel para complementar a estética do jogo.

Os traços de pintura não influenciaram apenas o visual, mas também a jogabilidade. O Clover Studios queria que o jogador não apenas desfrutasse da arte de Okami, mas também que interagisse com ela. "Assim que resolvemos o estilo gráfico e começamos a trabalhar com pinceladas, pensamos 'Não seria legal se pudéssemos, de alguma forma, envolver o jogador a participar desse trabalho artístico ao invés de apenas assisti-lo?'. Essa foi a ideia que fez surgir o Celestial Brush", disse Inaba ao GameSpy. O pincel celestial elevaria o nível de interação do jogador nos momentos de exploração e ação, para restaurar a natureza ou objetos dos cenários e golpear inimigos em combates, respectivamente. O mundo do jogo foi construído para reagir às interações com o Celestial Brush e o conceito de natureza do protótipo original foi mantido, com pequenas flores crescendo no andar de Amaterasu.
Diferentes artes conceituais para o visual de Amaterasu

Mundo de inspirações

Okami é fortemente inspirado nas antigas mitologias japonesas, mas não há precisão histórica. É perceptível que o enredo central traz inspirações na espiritualidade xintoísta do Japão, representado pelos personagens Amaterasu, a Deusa do Sol, Susano, o Deus dos oceanos e das tempestades, e na lenda Yamata no Orochi, o lendário dragão de oito cabeças e oito caudas. Curiosamente, durante o desenvolvimento, o Clover Studios chegou a utilizar dinossauros como inimigos, mas optou demônios e monstros tradicionais da cultura do Japão.

Kamiya e sua equipe adotaram a protagonista na forma de lobo por um simples motivo: a facilidade em ter que representar expressões durante cenas de diálogos. Entretanto, Amaterasu na forma de um animal significava que a necessidade de um guia para interagir com outros personagens e direcionar o jogador. Foi pensando em alguém pequeno e debochado durante uma reunião que surgiu Issun. Uma cena de diálogo improvisada durante o desenvolvimento demonstrou ser muito engraçada e o Clover Studios decidiu incluir o minúsculo e tagarela companheiro.


Os demais NPCs (personagens não-controláveis) traziam pequenas peculiaridades, que Kamiya atribuiu a um membro jovem da equipe. “O designer responsável pelos aldeões era jovem e cheio de energia, então é por isso que eles saíram do que jeito que são”, brincou o diretor em entrevista traduzida pelo site shmuplation. Inicialmente, esses personagens teriam uma personalidade mais humilde e trariam inspirações em Manga Nihon Mukashibanashi, série de TV baseada nos contos folclóricos japoneses. A equipe de desenvolvimento começou a criar pequenas histórias e piadas em cada personagem, que acabou influenciando nas animações e diálogos. Devido à essas características, foram criadas animações de alegria e tristeza (representada por uma nuvem de chuva) para os NPCs e ajudá-los se tornou parte da mecânica do jogo.


Um lugar ao sol

Okami foi lançado em abril de 2006 para PlayStation 2 no Japão e a versão americana chegou em setembro do mesmo ano. A equipe de localização da Capcom teve que traduzir mais de 1500 páginas de textos do jogo e fez várias adaptações para o público ocidental. Apesar de incluir várias referências a outros jogos da companhia, houve um enigma alterado na versão ocidental, já que exigia o desenho de um kanji, caracter da língua japonesa.

Mesmo aclamado por revistas e sites especializados na época, Okami não passou das 300 mil unidades vendidas mundialmente no PlayStation 2 no ano de lançamento, número considerado extremamente baixo e borrando as expectativas da Capcom. O temor do apelo de um jogo focado na cultura ocidental tinha se tornado realidade. God Hand, outro projeto do Clover Studios para o console da Sony, foi lançado no mesmo ano e sofreu do mesmo mal. O estúdio formado pelas brilhantes mentes da Capcom para criar novos jogos acertou nas ideias e falhou nos números. O risco não deu resultado e, no fim de 2006, foi anunciado que o Clover Studios fecharia as portas no início do ano seguinte, diante de um prejuízo de aproximadamente 3,3 milhões de dólares no fim período fiscal encerrado em setembro daquele ano. Consequentemente, Kamiya, Mikami e Inaba deixaram a companhia.


As vendas não justificavam uma sequência, mas a similaridade do Celestial Brush com as características do Nintendo DS e do controle do Wii fizeram criar o apelo de uma versão para as plataformas da Big N. A Capcom desconversou por algum tempo a possibilidade de uma versão para Wii, mas acabou anunciando o estúdio norte-americano Ready at Dawn, que havia desenvolvido Daxter e God of War: Chains of Olympus para PSP, como responsável pelo port. Mas a tarefa seria bastante árdua.

Okami era um jogo imenso e adaptá-lo para o Wii seria demorado. Além disso, os materiais de desenvolvimento do jogo original enviados pela Capcom para o Ready at Dawn estavam incompletos. O estúdio pediu para que a companhia japonesa cedesse computadores antigos e discos rígidos para recuperar o que podiam e, ainda assim, tiveram que recriar várias partes de Okami. Após conseguir portar o motor gráfico do jogo PlayStation 2 no Wii e adaptar o Celestial Brush para o uso do sensor de movimentos, o Ready at Dawn adicionou mais detalhes de pergaminho de papel em todos os elementos do game, além de permitir usar dois botões para desenhar com o pincel, um para traço livre e outro para fazer linhas retas. A única remoção em relação à versão original foi o vídeo dos créditos, já que trazia mensagens e pensamentos da equipe original, assim como o logotipo do Clover Studios, ato que Kamiya repudiou e considerou “decepcionante e triste”. Em resposta, o Ready at Dawn explicou que o Clover Studios não existia mais e não trabalhou na versão de Wii, logo não fazia sentido manter os créditos do original, além de precisar cortar o vídeo para encaixar tudo em um único disco do console da Nintendo.

Algum estágio certamente perdeu o emprego após utilizar a imagem
com a marca d'água IGN na capa da versão para Wii
Apesar de sofrer atrasos e ser promovido apenas de forma online e com concursos de arte, Okami foi lançado no Wii em abril de 2008 sem muita pompa, mas ainda manteve sua qualidade. Assim como a versão de PlayStation 2, as vendas no console de movimento da Big N foram baixas, atingindo 300 mil unidades vendidas mundialmente nos primeiros quatro meses após o lançamento. Infelizmente, a deusa do sol não conseguiu brilhar novamente. A versão norte-americana de Okami no Wii trouxe ainda algo extremamente bizarro: a capa do jogo tinha uma marca d’água do portal IGN no lado direito de Amaterasu! A Capcom chegou a disponibilizar três capas alternativas nos Estados Unidos como desculpa pela gafe.

Okami chegou a ganhar uma sequência, Okamiden, lançada para Nintendo DS em março de 2011. A aventura portátil adaptou a jogabilidade para a tela de toque e é igualmente ímpar em qualidade, mas o lançamento tardio, duas semanas antes da chegada do Nintendo 3DS no mercado norte-americano, prejudicou as vendas, não ultrapassando 430 mil unidades mundialmente.

Okami é um daqueles seletos títulos criados com extremo cuidado e repleto de detalhes e atenção, mas surpreendido pela imprevisibilidade do mercado de games. A versão HD chegará em breve ao Nintendo Switch e se você gosta de longas jornadas, com colecionáveis e sidequests, aconselhamos a dar uma chance ao título. Okami é exatamente como uma obra de arte: poucos conseguem compreendê-la, mas mesmo com o passar do tempo ainda consegue surpreender.



Revisão: Paulo Franco

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Desde que aprendeu a jogar videogames com Yoshi's Island e Donkey Kong Country 2, sempre é visto com um controle ou portátil da Nintendo na mão. Descobriu o amor por The Legend of Zelda com Ocarina of Time e sempre está querendo mais Zeldas. Gosta de escrever notícias, análises e bobagens aqui enquanto não está sonhando com um novo Silent Hill.
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