A solidão instrumental em Breath of the Wild

A música extremamente imersiva é uma das muitas coisas que o título oferece.

em 17/06/2018


Games são viagens. Com eles, nos transportamos para os mais diversos cenários longínquos. De repente, o longe não parece ser tão longe assim, enquanto mergulhamos de cabeça nas aventuras que nos aguardam. As trilhas sonoras dos jogos estão aí para aumentar essa relação. Como toda boa viagem, é sempre bom acompanharmos uma boa playlist — e, o título de Wii U e Switch, mostra o que a música tem um poder de imersão tão forte quanto qualquer outro elemento do jogo.


De uma maneira geral, a música tem sido um aspecto constante na franquia The Legend of Zelda. Em todos os seus títulos, não há um momento em que esse elemento seja negligenciado. Usada para situar o jogador em uma determinada cena,  a música ajuda a identificar os tons de dramaticidade e divertir. Existem tons muito variados em toda a trilha sonora, como os que simbolizam suspense, tristeza e até mesmo comédia. A trilha sonora também pode transportar o jogador para cenários diferentes, aglomerando uma série de sons que, aos ouvidos, lembram certas culturas e lugares.

Ante à grande responsabilidade de compor a trilha sonora para um game tão grande quanto Breath of the Wild, a Nintendo apoiou-se nas habilidades do compositor de Manaka Kataoka. Ele não é nenhum estranho para a franquia, já tendo sido responsável pela trilha de Spirit Tracks (DS), mas também é notável seu trabalho em outros títulos da Big N, como Wii Fit (Wii) e Animal Crossing: City Folk (Wii).

A ambientação através da música

A trilha sonora de Breath of the Wild é digna de destaque no meio de toda a franquia. É muito arriscado fazer uma afirmação dessas, afinal, pense em todos os títulos da série e em toda a sua complexidade musical, como em Ocarina of Time (N64) ou, se quiser um exemplo mais recente, Skyward Sword (Wii). Esses jogos e todos os outros agraciam com trilhas únicas, além de interpretações de grandes clássicos. Porém, o que faz com que a trilha do último título seja tão especial é simplesmente a genialidade em sua simplicidade.

O fato de que as linhas instrumentais sejam algo tão simples e minimalistas acaba por corroborar com a própria experiência da jogabilidade. Em vez de trilhas repletas de pompa e superlotadas de instrumentos orquestrados, Breath of the Wild elimina muitos elementos desnecessários para a construção de seu plano de fundo. A premissa desse título é a de que o jogador está sozinho, na imensidão selvagem de Hyrule, e a trilha sonora tenta, com todas as suas forças, transmitir essa ideia de solidão ao reduzir a carga instrumental — e dá muito certo. Um dos exemplos é a música tema do dia:



É possível perceber dois aspectos cruciais quando se pensa nessa música. O primeiro deles é a quantidade de momentos silenciosos, entre um acorde e outro. O piano faz um toque, pula alguns tempos musicais e, então, volta com delicadeza. Esses “buracos” na música, durante o jogo, são brilhantemente preenchidos por todos os sons de ambiente. Os passos de Link, apressados, sempre indo a algum lugar. O som do vento. O tecido do paraglider batendo contra o ar enquanto o jogador calmamente navega pelo céu azul.

O segundo aspecto mais importante desse tema é a persistência em utilizar as teclas mais para o final do instrumento. Elas são mais agudas e, em sucessão, seja rápida ou lenta, imitam o cantar dos pássaros, tão comum de se ouvir no dia. Esse artifício já foi muito utilizado por compositores de vários momentos da história, como em um dos movimentos das Quatro Estações, de Antonio Vivaldi. No primeiro movimento de “Primavera”, Vivaldi utilizou o mesmo princípio, com uma sucessão de notas similares em seu concerto de violino.

Claro que há uma linha separando as duas composições, e esta não é nada tênue. A música de Vivaldi é muito mais encorpada, já que acompanha outros instrumentos, como sopros e o cravo. A premissa de Breath of the Wild acaba por impedir que o compositor encha o tema com mais pompa. Portanto, tudo que se ouve é o piano, sendo complementado pelos sons ambientes.

A ideia continua a ser utilizada durante a noite. Existem acordes menores em ação aqui. Outro artifício, outro propósito. Existe uma teoria de que certas combinações de notas, acordes, escalas, entre outros, podem representar certas emoções humanas com perfeição. Por isso que, quando você ouve aquela música triste, ela soa como tal, ou, quando ouvimos um plano de fundo mais dramático, você consegue sentir a tensão. O tema noturno tira bom proveito disso,  encaixando um ambiente de suspense com sucesso, já que Link enfrenta diferentes desafios durante esse período.

O próximo desafio a ser enfrentado é a construção de um tema de cavalgada, sem utilizar dos elementos percussivos de uma orquestra completa. O som do trote, seja ele alucinado ou mais suave, sempre é representado pela constante batida da percussão. Em muitas ocasiões, como em programas antigos de rádio, ou na comédia satírica britânica Monty Python and the Holy Grail (em português, Monty Python - Em Busca do Cálice Sagrado), o som de cavalgada é representado pela batida de um coco partido pela metade. Não há elemento percussivo nos temas de cavalgada no game, mas o compositor achou uma alternativa muito criativa:



Um trote nada mais é do que uma constante. A parte mais importante de se ter em mente quando o assunto é cavalgada, é que o cavalo serve como um metrônomo — é um som que se repete de novo e de novo, sem parar, de uma forma ordenada e sempre igual. Breath of the Wild conta com uma série de notas ritmadas com perfeição para imitar essa sensação de trote. A repetição logo é preenchida por mais instrumentos, cordas, agora variando um pouco o som — mas o trote continua igual.

O violino ao fundo, assim como as notas mais graves do piano, servem para tirar a atenção do jogador do trote, para que ele assimile aquilo de uma forma um pouco mais ambiental. Quando o assunto é o tema de cavalgada durante a noite, os elementos estão todos lá novamente: o piano segue fazendo sua brincadeira, seu trote feliz, e os outros instrumentos entram com uma pegada um pouco mais dramática ao fundo, com a mesma intenção de tirar a atenção do jogador daquilo. Porém, o jogador é agraciado com o tema clássico da franquia, dessa vez, tão discreto e fácil de se assimilar que às vezes passa batido.

O ponto alto para esse aspecto da experiência, no entanto, é o final de ambos os temas. O piano faz uma coisa muito interessante, após um breve fade-out. Como quando o cavaleiro puxa as rédeas para o cavalo parar, a música também para, quebrando o tempo do trote, substituindo-o pelo protesto do cavalo, mas musicalmente.

O tom da coragem

As músicas de combate em Zelda seguem uma lógica. É muito comum, em vários jogos, ouvir o mesmo tipo de construção quando o assunto é o tema de batalha. Se prestarmos atenção, mesmo comparando dois jogos extremamente diferentes, as músicas evoluem. Elas começam com tons mais simples e, à medida que a tensão do combate aumenta, a pompa também sobe, adicionando mais instrumentos e, às vezes, acelerando o tempo. Ótimos exemplos de como essa dinâmica de combate funciona são os temas de combate de Ocarina of Time (N64) e Wind Waker (GameCube).

Em Breath of the Wild, esses elementos estão de volta. A música começa com poucos instrumentos, em ritmos constantes e, assim como a tensão da batalha, ela cresce. Quanto mais o jogador demora no combate, mais o tema se revela em toda sua complexidade. Ele se torna algo caótico a certo ponto, assim como muitas das batalhas mais demoradas acabam se tornando.



Os temas de combate variam de situação em situação, novamente utilizando daquele artifício ambiental já citado. Na maior parte do tempo em que a música acima toca, Link enfrenta os capangas normais de Hyrule a céu aberto. No entanto, o combate possui um toque musical diferente quando o herói enfrenta os vilões em Shrines. Esse artifício é muito mais direcionado ao tipo de inimigo do que ao ambiente em si, já que o herói encara pequenos guardiões que são seres mais robóticos do que animalescos, pedindo por trocas de notas mais precisas e automáticas, sem muito espaço para variações, indicando a precisão de movimento que as máquinas executam.

Nos temas dos Guardiões também acontece algo similar. O mais válido a se notar é a forma como a música se constrói, com um movimento crescente de piano antes da música se estruturar totalmente. Ela segue essa ideia da precisão de movimento com quase um metrônomo tocando ao fundo, uma repetição quase sem fim do mesmo tema. Ela parece um alarme de perigo, piscando e apitando, já que os Guardiões são ameaças terríveis.

Ao final, o jogador é recompensado com um desfecho que encaixa com perfeição quando o inimigo é destruído, como se o acorde final e a explosão lenta da máquina fossem peças de um quebra-cabeças. O tema tem uma variação mais lenta quando se enfrenta Guardiões destruídos. Não são ameaças tão grandes. Portanto, o tema não segue o mesmo tempo, é mais curto e não tem tantos elementos orquestrais.

Os temas de combate seguem com variações ainda mais características quando o assunto são alguns monstros em específico. Os grandalhões Hinox e Talus, com todas as suas variações, possuem temas próprios. Eles são minibosses, afinal de contas, e por isso merecem certo destaque. O artifício utilizado para alertar o jogador de certas ameaças funciona muito bem aqui. Ambos os monstros possuem temas muito distintos, mas existem certas características em ambos que podem ser comparadas — e, ao seu desfecho, é possível até mesmo traçar um comparativo entre essas músicas e o tema dos Guardiões.

Como as duas criaturas são grandes e desengonçadas, as músicas possuem certas faixas que representam sua linha de movimento. A percussão causa um efeito muito marcante nesse caso, já que podem representar os passos pesados das criaturas — especialmente no tema de Talus, onde os tambores e os instrumentos de sopro mais graves, como trombones, causam esse efeito de passos lentos e pesados.


Um mundo musical

The Legend of Zelda usa um artifício muito comum da indústria em relação à construção musical, que é a constante utilização da música para localizar o jogador nos diferentes ambientes do jogo. Algumas escalas musicais específicas já estão enraizadas em nossas mentes, associadas a algum lugar ou cultura. Isso é muito visível quando se fala dos temas de Kakariko Village, tanto de dia quanto de noite.



Há uma vasta utilização de elementos da música tradicional japonesa, o Gagaku (雅楽). No entanto, a escala musical utilizada para esse tema, embora modificada com todos esses elementos novos, ainda é a mesma que em Ocarina of Time (N64). É muito difícil dizer, pela maneira como é tocada, se os instrumentos e o ambiente musical em si possuem um contexto totalmente novo. Kakariko é representada como uma vila oriental. Portanto, seu tema é tratado com a mesma tonalidade. As demais cidades não seguem o mesmo exemplo, já que seus temas são muito mais óbvios para quem já está familiarizado com a franquia.

Para fechar, há uma grande gama de temas clássicos que acompanham o jogo, mas de uma forma muito discreta. Eles sofrem grandes modificações e alguns deles ficam imperceptíveis ao primeiro contato. O melhor exemplo disso é a música do Temple of Time. É possivelmente o tema que melhor resume a ideia geral da trilha sonora do jogo. De primeira, o jogador não associa essa música ao tema original de Ocarina of Time. No entanto, a música do Temple of Time é tão reduzida, tanto em pompa quanto em tempo musical, que é propositalmente difícil de reconhecer.

A Internet está repleta de vídeos que permitem verificar o tema, onde o uploader acelera o vídeo a ponto da música entrar no mesmo tempo que o tema clássico:



Revisão: Gabriel Bonafé

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