Em meados dos anos 1980, os desenvolvedores de jogos para o Famicom/NES atuavam, sem saber, em uma tarefa dupla. Poderiam pensar eles que o seu trabalho era “apenas” o de produzir novos games que tirassem o máximo proveito da fantástica máquina que veio resgatar a décima arte do buraco. Porém, sob essa missão mais trivial, o que eles faziam secretamente era codificar ideias e conceitos de maneira a lançar as bases para a indústria pelas próximas décadas. Embora não tenha sido o início propriamente dito da mídia, a era 8-bits foi decisiva como talvez nenhuma outra em definir gêneros, fórmulas e tendências para os games que perdurariam até os dias de hoje — sob roupagens diferentes, mas sem nunca mexer muito na essência.
É um tanto bizarro pensar que quando Yuji Horii iniciou o planejamento de seu primeiro Dragon Quest (conhecido como Dragon Warrior nas versões ocidentais até 2005), o gênero RPG era considerado um nicho muito específico e que dificilmente daria as caras em um console de mesa — pior ainda supor que teria um apelo entre faixas etárias que variavam desde as crianças até os gamers mais experientes. Também, pudera: as aventuras de RPG
eletrônico, que até então se concentravam nos PCs, eram experiências densas, baseadas em textos e cheias de números e estatísticas complexas trazidas diretamente dos jogos de mesa. Praticamente o diametral oposto do oferecido pela simplicidade cativante (literalmente, “ande para a direita”!) e colorida dos grandes sucessos que já faziam parte da biblioteca do NES à época. Mas, a criação de Horii estava pronta para chegar e mudar esse cenário, e de quebra fundando o subgênero de JRPGs no processo.
Uma jornada simples
Trinta anos depois, se começamos falando da inovação que representou na época o lançamento do game, é certo que revisitar o primeiro Dragon Quest hoje pode causar uma primeira impressão oposta: trata-se de um jogo básico e arcaico. Porém, o que é interessante em contextualizar o game não é mostrar seu valor histórico apesar de suas limitações, mas sim que muito do que soa básico e simplificado na experiência foi feito intencionalmente para que fosse assim. E, dentro dessa proposta, a entrega não poderia ser melhor.
Apesar de ser considerado o pai dos JRPGs, os elementos reconhecíveis do subgênero mediante uma primeira olhada são ligados principalmente ao estilo mangá da arte icônica de Akira Toriyama (que a localização ocidental tentou atenuar a todo custo, no lançamento original) e na estrutura do jogo, que combinava a visão top-down do mundo de Ultima (PC) com a batalha em turnos em perspectiva de primeira pessoa de Wizardry (PC), inspirações centrais de Horii. Nada de party repleta de personagens, nada de histórias mirabolantes, nada de cutscenes ou diálogos alongados.
A trama exemplifica bem o caráter de simplicidade da proposta. O pedido do rei, o herói destinado das lendas, o lorde demoníaco e até mesmo a princesa raptada pelo dragão: desfile orgulhoso de clichês. Como descendente do lendário herói Erdrick, cabe a você recolher os artefatos mágicos da profecia de modo a criar a Rainbow Bridge, ponte que é capaz de penetrar a escuridão que envolve o castelo de Charlock, onde reside o terrível Dragonlord, aguardando a última esperança da luz desafiá-lo antes de mergulhar toda Alefgard na mais pura escuridão. No processo, você de quebra pode resgatar a princesa de Tantegel, mantida cativa em uma caverna por um lacaio do vilão. É isso, essa é a história de todo o game.
O sistema de batalha é igualmente sem complicações, trazendo exclusivamente combates um-contra-um entre o herói e um dos carismáticos monstros que povoam o continente. Com um sistema de progressão linear bastante simples, o herói conta com magias de ataque, cura e suporte, sintetizando as habilidades das classes que tipicamente constituem um RPG com sistema de grupo. A estratégia do jogo acaba centrada em torno da exploração do mapa, simultaneamente com as decisões que envolvem a progressão — em especial a forma como juntar e gastar o dinheiro na seleção de equipamentos diversa que as diferentes cidades oferecem, além, é claro, de planejar modos mais eficientes de se ganhar pontos de experiência (sim, o famoso grinding).
Com um continente todo acessível a pé e em pouco tempo, a exploração acaba sendo o foco da experiência, e é na interação com os NPCs e na investigação dos cenários que o jogador vai descobrindo por si qual a sua próxima tarefa a cumprir, num sistema que economiza nas pistas e orientações diretas e enfatiza a tentativa-e-erro. Para os nossos padrões atuais, pode parecer um tanto enfadonho (e gerar a clássica recorrida ao Google em tempo recorde), mas para a época a escolha cumpria um papel duplo: garantia a vida longa do game (que pode ser terminado muito rapidamente com a ajuda de um guia) ao mesmo tempo em que servia para realizar a visão de Horii a respeito da identificação do jogador com seu avatar heroico.
O fato é que, sob essa fórmula básica, o jogo funciona tão bem que não apenas captou o público da época com seu carisma e proposta inovadora, mas mantém-se ainda hoje como uma experiência divertida e recompensadora — coisa que não pode ser dita a respeito de outros games com importância histórica da época (e da própria franquia — estou olhando pra você, Dragon Quest II). Dentro de uma proposta simples e focada no mais básico que o gênero tem a oferecer, o primeiro Dragon Quest constrói um game divertido, envolvente e empolgante ainda nos dias de hoje, especialmente para o jogador que não se importa em gastar alguma parcela de tempo na tarefa agridoce do grinding.
Apesar de ser considerado o pai dos JRPGs, os elementos reconhecíveis do subgênero mediante uma primeira olhada são ligados principalmente ao estilo mangá da arte icônica de Akira Toriyama (que a localização ocidental tentou atenuar a todo custo, no lançamento original) e na estrutura do jogo, que combinava a visão top-down do mundo de Ultima (PC) com a batalha em turnos em perspectiva de primeira pessoa de Wizardry (PC), inspirações centrais de Horii. Nada de party repleta de personagens, nada de histórias mirabolantes, nada de cutscenes ou diálogos alongados.
A trama exemplifica bem o caráter de simplicidade da proposta. O pedido do rei, o herói destinado das lendas, o lorde demoníaco e até mesmo a princesa raptada pelo dragão: desfile orgulhoso de clichês. Como descendente do lendário herói Erdrick, cabe a você recolher os artefatos mágicos da profecia de modo a criar a Rainbow Bridge, ponte que é capaz de penetrar a escuridão que envolve o castelo de Charlock, onde reside o terrível Dragonlord, aguardando a última esperança da luz desafiá-lo antes de mergulhar toda Alefgard na mais pura escuridão. No processo, você de quebra pode resgatar a princesa de Tantegel, mantida cativa em uma caverna por um lacaio do vilão. É isso, essa é a história de todo o game.
Toda grande jornada começa com apenas um passo. |
Por favor, Sr. Slime, tenha piedade! |
O fato é que, sob essa fórmula básica, o jogo funciona tão bem que não apenas captou o público da época com seu carisma e proposta inovadora, mas mantém-se ainda hoje como uma experiência divertida e recompensadora — coisa que não pode ser dita a respeito de outros games com importância histórica da época (e da própria franquia — estou olhando pra você, Dragon Quest II). Dentro de uma proposta simples e focada no mais básico que o gênero tem a oferecer, o primeiro Dragon Quest constrói um game divertido, envolvente e empolgante ainda nos dias de hoje, especialmente para o jogador que não se importa em gastar alguma parcela de tempo na tarefa agridoce do grinding.
Sem esquecer, é claro, do farm de Gold — afinal nem só de pontos de experiência vive o descendente de Erdrick! |
Uma jornada complexa
A simplicidade aparente acaba sendo, afinal de contas, apenas a superfície. De um lado, é certo que muitos dos marcos do gênero ainda ausentes aqui viriam aparecer nas entradas subsequentes da franquia, e é possível dizer que praticamente todas as tropes do gênero remontam a ela: dos sistemas multiclasses à captura de monstros, passando pelas histórias em capítulos, provavelmente foi algum Dragon Quest a oferecer a fórmula. Por outro lado, também é preciso reconhecer que essa entrada inicial tem um objetivo muito específico, que é o de experimentar com o gênero em uma aventura simples de exploração e role-play em um sistema que traduza os complicados comandos textuais para a simplicidade de um joystick de dois botões.
Nosso protagonista sem nome, silencioso e sem personalidade bem definida visa uma imersão que traz muito mais dos RPGs ocidentais do que o que se tornou a marca do gênero no Japão, que usualmente conta com personagens mais “fechados” e uma imersão que se dá na relação com uma história predominantemente linearizada (resultando no famoso feeling de “anime jogável”). Essa indefinição foi a forma encontrada pelos produtores em trazer o ar de exploração “em mundo aberto”, que se responsabiliza por boa parte do tempo de jornada do game.
Ao invés de progredir completando determinadas tarefas pré-estabelecidas no roteiro que resultam em cutscenes que vão avançando o status quo da história, o jogador interage com um continente de Alefgard que funciona como uma espécie de grande puzzle no qual cabe a ele ir descobrindo os movimentos e o encaixe das peças até obter a ponte de arco-íris. Trata-se de uma estrutura simples e reminiscente das aventuras em texto e adventures de computador: carregar um item daqui pra lá, falar com determinado NPC de lá pra cá, planejar e especular sobre o próximo passo.
Apesar de a estrutura do primeiro Final Fantasy, lançado no ano seguinte, trazer inegavelmente um pouco desta mesma abordagem, o game da Square também se diferenciaria de cara pela narrativa de épico, com uma viagem percorrendo um mundo extenso, reinos e mais reinos a se explorar e combate com diversos sub-chefes.
O compasso da história e da progressão em Dragon Quest, por sua vez, traz uma pegada um tanto diferente. O foco da abordagem dos produtores acaba sendo muito mais a da jornada do que o de contar uma história em si. Mesmo o famigerado grinding – que sim, marca presença em peso e constitui quase que metade do tempo de jogo – tem um papel importante em estabelecer um senso de exploração e aventura no mundo aberto.
Todo o design do mundo é feito com isso em mente. O castelo de Tantegel funciona como base do jogador e único ponto disponível para save (luxo da versão americana, já que o original japonês ainda operava sem bateria e com terríveis e longuíssimas passwords). A fortaleza de Charlock aparece logo na margem oposta à do castelo inicial, sendo provavelmente a primeira localidade do mapa do mundo que o jogador registra em sua jornada. Tão perto e tão distante, seu objetivo se mostra claro desde o início, mas o modo como construir a ponte e sua ligação com seu antepassado mítico Erdrick ficarão por conta das duras viagens a serem feitas pelo continente.
Nosso protagonista sem nome, silencioso e sem personalidade bem definida visa uma imersão que traz muito mais dos RPGs ocidentais do que o que se tornou a marca do gênero no Japão, que usualmente conta com personagens mais “fechados” e uma imersão que se dá na relação com uma história predominantemente linearizada (resultando no famoso feeling de “anime jogável”). Essa indefinição foi a forma encontrada pelos produtores em trazer o ar de exploração “em mundo aberto”, que se responsabiliza por boa parte do tempo de jornada do game.
Ao invés de progredir completando determinadas tarefas pré-estabelecidas no roteiro que resultam em cutscenes que vão avançando o status quo da história, o jogador interage com um continente de Alefgard que funciona como uma espécie de grande puzzle no qual cabe a ele ir descobrindo os movimentos e o encaixe das peças até obter a ponte de arco-íris. Trata-se de uma estrutura simples e reminiscente das aventuras em texto e adventures de computador: carregar um item daqui pra lá, falar com determinado NPC de lá pra cá, planejar e especular sobre o próximo passo.
Tantegel: lar, doce lar! |
O compasso da história e da progressão em Dragon Quest, por sua vez, traz uma pegada um tanto diferente. O foco da abordagem dos produtores acaba sendo muito mais a da jornada do que o de contar uma história em si. Mesmo o famigerado grinding – que sim, marca presença em peso e constitui quase que metade do tempo de jogo – tem um papel importante em estabelecer um senso de exploração e aventura no mundo aberto.
Todo o design do mundo é feito com isso em mente. O castelo de Tantegel funciona como base do jogador e único ponto disponível para save (luxo da versão americana, já que o original japonês ainda operava sem bateria e com terríveis e longuíssimas passwords). A fortaleza de Charlock aparece logo na margem oposta à do castelo inicial, sendo provavelmente a primeira localidade do mapa do mundo que o jogador registra em sua jornada. Tão perto e tão distante, seu objetivo se mostra claro desde o início, mas o modo como construir a ponte e sua ligação com seu antepassado mítico Erdrick ficarão por conta das duras viagens a serem feitas pelo continente.
Peraí, quer dizer que tudo que eu tenho que fazer é chegar logo ali!? |
As dimensões da terra de Alefgard são relativamente reduzidas para um mapa do mundo, e ele chama a atenção pelo caráter de poder ser percorrido todo a pé. Os produtores se utilizam de vários artifícios para fazer com que as viagens sejam sentidas como difíceis e envolvam tomadas de decisão e planejamento: um nível de dificuldade crescente dos monstros, conforme nos afastamos de Tantegel, regiões montanhosas que atrasam o passo do personagem, pântanos venenosos e cavernas escuras que exigem o uso de tochas ou da magia de iluminação para serem percorridas – onde o mecanismo da visibilidade reduzida tenta trazer um pouco da dificuldade dos labirintos em primeira pessoa dos RPGs de computadores como Wizardry, que faziam sucesso entre os produtores e viriam em breve a inspirar projetos como Digital Devil Story: Megami Tensei (NES).
U-uma tocha? Pra mim!? Realmente, é muita sorte! |
No final de cada uma dessas viagens, o jogador retorna para Tantegel para curar-se e salvar seu progresso com o rei, o que confere ao jogo um caráter cíclico e dá para a história contornos de uma aventura mais particular, ao invés da grande jornada épica que veríamos em versões posteriores e por todo o gênero dos JRPGs em geral.
A alma de Dragon Quest
Nesse sentido, o cenário de um mundo já prestes a sucumbir de vez na escuridão funciona perfeitamente, já que a jornada de nosso herói sem nome se aproxima de uma última investida solitária e até mesmo um tanto melancólica contra o poderio do Dragonlord. Em suas viagens, o jogador entrará em contato com um mundo repleto de monstros, povoado por cidadãos que vivem em temor e já vão entregando os pontos frente ao avanço da escuridão.
Quando Yuji Horii defende a escolha pelo grinding como modo legítimo de fazer o jogador sentir o peso do esforço como moeda a se pagar pelos seus objetivos, trata-se não apenas de uma escolha de jogabilidade, mas também de narrativa. É na dificuldade percebida pelo jogador em suas jornadas solitárias que a construção do mundo deste primeiro game se dá, e essa imersão compensa a falta de construção de um lore mínimo para além das conversinhas típicas com os NPCs padrões da vida.
Contrastado com esse clima pedregoso, temos os dois elementos da produção que dão o ar de Dragon Quest e criam aqui, já nessa primeira versão, a identidade artística da série. A trilha sonora de Koichi Sugiyama combina temas épicos fantásticos com um toque mínimo de melancolia, embalando perfeitamente a jornada em sua simplicidade. Por outro lado, os designs humorísticos de personagens no estilo chibi de Akira Toriyama trazem uma leveza e charme para a coisa toda, fator complementado muito bem pelos carismáticos e idiossincráticos monstros, que se tornariam talvez o maior estandarte da franquia.
Do inesquecível Slime ao design incrível do Golem, passando pelas absurdas Chimaeras e os ameaçadores Scorpions, os monstros de Toriyama acertaram uma mina de ouro criativa de tal forma que permanecem até hoje reconhecíveis e presentes nos games e no imaginário dos jogadores praticamente sem modificações em relação aos seus designs originais. O trabalho de sprites para os monstros dá o cuidado necessário para rendenizá-los bem, fato que na versão original japonesa ainda cobrava seu preço pela tela de batalha um tanto “chapada” e sem background, mas que por sorte na versão ocidental se beneficiou do revamp gráfico da engine de Dragon Quest III.
A união da tríade Horii – Toriyama – Sugiyama garante uma identidade forte ao jogo que complementa perfeitamente seu design preciso e sem arestas, fazendo da aventura um acerto imediato. Prova disso é que o jogo sofreu pouquíssimas alterações que não sejam gráficas em seus remakes para o Super Famicom (infelizmente inédito no ocidente) e, posteriormente para Android. Tirando um rebalanceamento leve nas curvas de experiência, o game permanece exatamente o mesmo – e tão jogável para o entusiasta de JRPGs que decide conhecer o game em pleno 2018 quanto era para quem nunca ouvira falar em RPGs em 1986. Uma quest que vale a pena ser visitada e percorrida no mínimo uma vez, para todo bom apreciador do estilo.
Princesa |
O carismático vilão, Dragonlord. |
A união da tríade Horii – Toriyama – Sugiyama garante uma identidade forte ao jogo que complementa perfeitamente seu design preciso e sem arestas, fazendo da aventura um acerto imediato. Prova disso é que o jogo sofreu pouquíssimas alterações que não sejam gráficas em seus remakes para o Super Famicom (infelizmente inédito no ocidente) e, posteriormente para Android. Tirando um rebalanceamento leve nas curvas de experiência, o game permanece exatamente o mesmo – e tão jogável para o entusiasta de JRPGs que decide conhecer o game em pleno 2018 quanto era para quem nunca ouvira falar em RPGs em 1986. Uma quest que vale a pena ser visitada e percorrida no mínimo uma vez, para todo bom apreciador do estilo.
Revisão: Vinícius Veloso