Um pai de dois filhos
No já distante ano de 1986, um empregado da Sony acreditava que a empresa deveria se envolver no mercado dos games, que àquela altura se reerguia com pompa da forte crise sofrida alguns anos antes, tendo como o salvador a figura do Famicom, o NES japonês. Trabalhando sozinho em suas horas vagas, pois os executivos da gigante japonesa não tinham interesse nas diversões eletrônicas, ele desenvolveu um chip de áudio compatível como o console da Nintendo, aprimorando aquela que ele considerava a característica mais carente do aparelho.Fazendo contatos nos bastidores da própria Nintendo, após dois anos de trabalho, esse engenheiro apresentou aos executivos da Big N sua obra. Impressionados, os cartolas da desenvolvedora entraram em contato com a Sony na busca de uma parceria na fabricação de componentes da fabricante de eletrônicos em seus consoles.
A parceria entre Nintendo e Sony foi firmada em 1988, no entanto, para o desenvolvimento de seu próximo console, o Super Famicom, que receberia um chip de áudio fruto desse acordo. Os trabalhos seriam liderados pelo engenheiro em questão, cujo nome é Ken Kutaragi — aquele que futuramente seria conhecido como o pai do PlayStation.
Uma complexa trama de concorrências
Enquanto isso, também em 1988 ,a Sony e a Phillips, grandes rivais e pioneiras na tecnologia de CDROMs, chegaram a um acordo de normatização dessas mídias óticas, para ser aplicada na produção de seus leitores e discos — conjunto de regras conhecido como "livro amarelo". Convencido de que o futuro dos games também passaria pelos CDs, Kutaragi também concebia projetos para que o Super Famicom também fosse capaz de ler os discos.Lançado no final de 1990, o Super Famicom recebeu o chip de áudio de fabricação da Sony, mas manteve como sua mídia os cartuchos, interrompendo a momentaneamente a parceria entre a equipe de Kutaragi e a Nintendo, o que, por outro lado, não impediu o extremo sucesso do console em seu lançamento.
Observando as tendências de mercado e a proximidade entre Nintendo e Sony, a SEGA decidiu também dar um passo adiante em seu principal console para continuar a concorrer de igual para igual com o Famicom. Surpreendentemente, ela também se aproximou da Sony na busca para o desenvolvimento de um periférico de leitura para CDs para o Mega Drive. No início de 1991, SEGA e Sony anunciaram a chegada do SEGA CD para o natal daquele ano.
Ao tomar conhecimento dos planos da SEGA, a Nintendo resolveu retomar os contatos com Kutaragi e sua equipe na Sony buscando concretizar os projetos do engenheiro para a produção de um leitor de CDs para o Super Famicom. E, neste ponto, nasceria a rivalidade entre as duas empresas.
A discórdia: Nintendo e seus jogos em risco
Avançando no desenvolvimento do periférico para o Super Famicom, a Nintendo concebeu o projeto do Nintendo Disc (ND). Ele seria uma mídia ótica envolta em uma capa de acrílico, um formado exclusivo para uso no SNES CD, como foi batizado o leitor. No entanto, a Sony não aceitou a proposta do Nintendo Disc e desejava que o SNES CD funcionasse com os CDROMs comuns.Conforme os acordos firmados em 1988, no eventual desenvolvimento de um leitor de CDROMs para o futuro console da Nintendo, a Sony teria uma gorda fatia dos lucros das vendas do jogos ao mesmo tempo que uma parcela de controle e mais lucros sobres as licenças das propriedades intelectuais da Big N que fossem lançadas em CD, mídia desenvolvida pela Sony. Ao tentar criar o Nintendo Disc, uma mídia própria, a desenvolvedora se protegeria desse ônus. O que, por sua vez, a Sony não aceitaria.
O clímax da história ocorreu na feira de eletrônicos de Chicago, a Consumer Eletronics Show (CES), de 1991, principal evento de tecnologia da época. Durante a exposição, buscando pressionar a Nintendo, a Sony anunciou sua entrada no mundo dos consoles ao apresentar seu novo produto, o Play Station (com espaço). Ele seria capaz tanto de rodar os CDROMs quanto cartuchos do Super Nintendo.
Surpreendida e pressionada, a Nintendo agiu rápido e deu o troco anunciando, no dia seguinte: uma parceria com a Phillips — rival da Sony no desenvolvimento dos CDROMs — para a criação de um novo SNES CD independente.
Uma complexa trama de concorrências: segunda parte
Inciando os trabalhos, a parceria entre Nintendo e Phillips buscava desenvolver um periférico de leitura de CDs para o Super Famicom sem privar a empresa japonesa do controle de suas licenças e jogos. Em contrapartida, os jogos de SNES CD também seriam compatíveis com o console que a empresa holandesa preparava, o famigerado CDi. Também, a Big N daria concessões para a Phillips ter jogos exclusivos dos personagens da Nintendo no CDi — cujos frutos bem conhecemos.Na edição de 1992 da mesma feira de Chicago, as duas empresas apresentaram as primeiras informações concretas sobre o SNES CD. No entanto, também presente no evento, a Sony não queria ser deixada para trás e continuou a apresentar seus projetos para o Play Station (com espaço), seu console próprio capaz de rodar CDs e cartuchos. Ao mesmo tempo, judicialmente, ela buscava pressionar a Big N a cumprir os acordos firmados com Kutaragi em 1988.
Segundo protótipo do Play Station "híbrido" publicado na Famistu (na época, Famicom Tsushin) em 1992 |
O SNES começa a tomar forma (ou não)
Essa parceria tripla fora firmada já em meados de 1993. Àquela altura do campeonato o mundo já sabia do que o SEGA CD era (in)capaz de fazer. Um fracasso de vendas em todas as regiões, o periférico rendeu jogos de qualidade duvidosa — com pouquíssimas exceções — que não eram muito mais que filmes e desenhos interativos. Apresentava-se então o questionamento de quanto as plataformas da quarta geração poderiam, realmente, usufruir da capacidade dos CDROMs.As primeiras experiências com o SNES CD reforçavam essa desconfiança. Apesar de nunca ter sido revelado nenhum protótipo do periférico ou nenhum jogo desenvolvido exclusivamente para ele, nos bastidores comentava-se que os testes com o console apresentavam dificuldades. O aparelho seria utilizado de forma antiquada — mesmo se comparado ao SEGA CD. O periférico deveria ser instalado abaixo do console, mas a conexão seria feita através de cabos ligados a um cartucho, que, por sua vez, seria, então, inserido no Super Famicom.
Esse cartucho possuiria uma unidade de processamento auxiliar chamada HANDS (Hyper Active Data-Transfer System) para "mastigar" para a CPU do Super Famicom o volume de dados transferidos pelos CDROMs, muito maior do que os cartuchos eram capazes. No entanto, ainda assim, os resultados eram pouco satisfatórios: as limitações do hardware eram enormes e as telas de loadings intermináveis. E, como se não bastassem os problemas técnicos, as rivais Sony e Phillips não se conversavam bem e, por diversas vezes, itens do desenvolvimento esbarravam em disputas legais e financeiras entre as duas.
Artigo publicado na EGM em 1992. |
O legado de uma experiência marcante
Após ter a data de lançamento anunciada para 1994, custando 299 dólares - um valor alto para a época (a título de comparação o próprio console foi lançado nos EUA por 199 dólares) - o SNES CD foi formalmente abordado por todos os envolvidos no mesmo ano. A Nintendo decidiu por um caminho mais elegante e menos turbulento para aprimorar o desempenho do Super Famicom ao instalar chips especiais diretamente nos cartuchos — sendo o exemplo mais famoso o Super FX de Star Fox.Embora o SNES CD jamais tenha sido lançado, a experiência foi decisiva para todas a partes. Após o fracasso colossal do caro e fraco CDi, a Phillips percebeu que o mercado dos games era muito mais complexo do que ela imaginava. Já a Nintendo concluiu que usar CDROMs em consoles ainda seria algo bastante distante e não teria benefícios a curto prazo em seus aparelhos — especialmente pensando nos loadings — e decidiu manter os cartuchos como mídia principal do Nintendo 64 (naquele tempo conhecido como projeto ULTRA 64).
Revisão: Vitor Tibério
Capa:Jean Bohlen