Atenção: este texto possui revelações sobre o enredo (spoilers) de The Legend of Zelda: A Link Between Worlds. Leia por sua conta e risco!
O tesouro de uns…
Antes de já pularmos justificando os motivos de tanta aclamação e poder entender alguns fatores da forma como A Link Between Worlds foi encarado pelos fãs e pela mídia, é necessário que relacionemos a forma de como o jogo se compara ao seu “precursor espiritual” da era 16-bit.Não é nenhuma novidade que A Link Between Worlds é uma sequência indireta de The Legend of Zelda: A Link to the Past, para Super Nintendo, um dos jogos mais aclamados pelos fãs da série, e para muitos a obra-prima da franquia. Nesse contexto, A Link Between Worlds também constrói suas próprias mecânicas, design e outras decisões de produto em cima de A Link to the Past, um jogo de mais de 20 anos de idade. Sem entrar no subjetivo assunto do quão atemporal o clássico do SNES realmente chega a ser (especialmente em comparação com obras como The Legend of Zelda: Ocarina of Time, por exemplo), ainda assim é difícil negar que muitas das decisões tomadas há tanto tempo levavam em conta, na verdade, limitações do SNES em reproduzir o que os desenvolvedores pretendiam. Desde coisas banais como uma visão planificada do mapa até problemas mais específicos como a limitação de oito direções (e só quatro de ataques da espada) provindas do controle digital do Super Nintendo, ele era um imenso esforço (longe de ser em vão) em evoluir a série desde seus primórdios do NES de uma forma épica e quase revolucionária como Super Metroid foi para o Metroid original ou Super Mario World foi para Super Mario Bros. 3.
Assim como os outros lançamentos da era, A Link to the Past era, antes de mais nada, um aperfeiçoamento técnico e mecânico da franquia |
É claro que, quando olhamos para trás por esse ângulo, vemos que a exigência em cima desse tipo de produto era bem mais sutil. Não existia uma preocupação em expandir o mercado e adaptar seus produtos a outros públicos através de meios novos e facilitados de se jogar porque, afinal, a indústria de videogames ainda estava dando seus primeiros passos e os que menos teriam de reclamar sobre a falta de novidades nos jogos eram justamente os consumidores que, na época, eram em sua maioria jovens e adolescentes. E é justamente por isso que é impossível negar que muitas das inovações de A Link to the Past ainda dependiam de dois fatores principais: da melhoria técnica que o SNES oferecia e que os consumidores buscavam, e da evolução das mecânicas da série, introduzidas no NES. O maior risco é que ambos esses fatores são facilmente superados por novos lançamentos da franquia. Ocarina of Time, por exemplo, pôde fazer uso dos fundamentos mecânicos do predecessor de 16-bit para construir um Zelda totalmente tridimensional (características de uma evolução técnica) em que, além de conter animações dinâmicas e outras melhorias narrativas, era possível equipar mais de um item a cada vez, mirar nos inimigos através do Z-Targetting e usar o escudo sem precisar guardar o item equipado (o que caracteriza avanços de mecânica). Todos esses elementos, que na época eram novidade em Ocarina of Time, também eventualmente vieram a se aperfeiçoar em títulos subsequentes, que se aproveitariam do precursor para evoluir a franquia.
Um mockup da IGN, que combina Super Smash Bros. for 3DS e Monster Hunter 3, mostra como um novo título poderia se parecer no Nintendo 3DS caso a Nintendo tivesse optado por continuar a tradição evolutiva da série |
Déjà vu
Em primeiro momento, A Link Between Worlds pareceu nos mostrar, antes de tudo, que o seu maior valor está, sim, agregado à nostalgia. Isso podia significar que a Nintendo estaria apostando mais em um elemento subjetivo e específico de cada tipo de pessoa do que com elementos mais concretos como, anteriormente dito, melhorias técnicas e mecânicas em prol da evolução da franquia. A técnica, nesse caso, estaria mais focada em vender um produto comparando-o a outro já conhecido e querido por um seleto público-alvo ao invés de ressaltar suas próprias qualidades como algo independente, mesmo que baseado em raízes antigas.Mas o uso da nostalgia é uma faca de dois gumes e um elemento muito volátil de se manipular: a própria divulgação em massa pela mídia por parte da Nintendo não só causou um grande temor entre os fãs que eram excluídos desse público-alvo (como os que conheceram Zelda depois da era do Super NES), mas também para os próprios fãs que faziam parte exatamente desse público, com medo de que o jogo pudesse desfazer uma obra já primordialmente perfeita, já que em time que está vencendo não se mexe, ou que ele nunca alcançaria a grandiosidade e o legado do anterior.
Essa tirinha do Dorkly parodia exatamente o receio que o mercado teve durante um anúncio tão inesperado |
Se o chamariz de A Link Between Worlds era ser nostálgico, que graça teria para quem nunca de fato conheceu a referência? ...Muito mais do que se imaginava! |
Mundos à parte
Meu primeiro contato com o jogo, além do contato indireto que gerou tantas dúvidas e preocupações através dos trailers de revelação pelo Nintendo Direct, foi através da sugestão de um amigo para experimentar o jogo no próprio 3DS dele. Era ainda a semana de lançamento do título e, carregado de todas as inseguranças e de todo ceticismo citados acima, eu duvidava muito não apenas que eu poderia gostar de tal produto, mas que ele sequer era voltado para agradar ao público que eu fazia parte. A maioria dos conhecidos que tinham adquirido o jogo logo na estreia também haviam jogado A Link to the Past em suas respectivas infâncias e, mesmo com a mesma incerteza, foram mais espontâneos na aquisição.Mas algo estranho e bem inesperado já veio a acontecer nesse momento. Para começar, um elemento impossível de se provar até que se jogue: os controles. Contrariando completamente a noção que qualquer um teria ao compará-los com os controles limitados do Super Nintendo, os movimentos de Link no 3DS eram lisos e extremamente responsivos. Já era sabido que, dessa vez, as espadadas não estariam limitadas apenas a quatro direções, mas na prática esse conceito faz toda a diferença. Em questões de jogabilidade, o jogo me evocou outros títulos de portátil, como Spirit Tracks e Phantom Hourglass, mas sem todo o empecilho de se usar uma caneta. Esse aspecto apenas melhoraria com o tempo, quando eu finalmente daria uma chance ao adquirir o jogo e descobrir todo o resto sozinho, como a utilização do escudo pelo botão de ombro direito (o que não acontecia no precursor), a função de Quick Equip e outras funcionalidades que não se baseavam em designs limitados e antigos do predecessor do Super Nintendo. Já a mecânica de Merge, que era uma das únicas novidades no jogo em termos de jogabilidade, impressionantemente foi capaz de mudar a nossa tradicional e concretizada perspectiva diante dos antigos desafios que a série propunha e que ela própria apenas se preocupava em aprimorar ao invés de reinventar.
No fundo, o jogo inteiro tinha por objetivo quebrar perspectivas conservadoras e reinventar formas novas de encarar desafios velhos. O Merge é apenas uma das representações mais óbvias desse objetivo |
Essa sensação surpreendente e bastante inesperada de “nostalgia fantasma” não era só mérito da música, e era exatamente essa sensação que me levaria a abrir os olhos sobre a genialidade e da capacidade da Nintendo de sempre nos surpreender. Mesmo que algumas trilhas trouxessem lembranças de outras fontes (como a música de Kakariko Village que foi herdada para Ocarina of Time, o famoso tema de Dark World que se faz presente em Four Swords Adventures e Super Smash Bros. Brawl ou o tema principal de Hyrule Field, que também é a música-tema da série), outros elementos menores ajudavam os fãs “excluídos” a se sentirem em casa, talvez até mais do que o próprio público pretendido. A máscara de Majora pendurada na parede de casa, as Ice Ruins que remetiam aos melhores momentos de Snowhead Temple de Majora’s Mask e similarmente a Turtle Rock, que lembrava em alguns aspectos as aventuras em Great Bay Temple. Como isso era sequer possível? É quase impossível explicar a lógica que uma coisa tem com a outra, mas isso ocorre justamente porque a nostalgia é um sentimento subjetivo às memórias e sentimentos de cada pessoa que a sente: quando não existe nada para se recordar, a mente trata de relacionar a experiência mais próxima que já se teve daquilo e aplicar a mesma sensação nessa memória. Isto, claro, quando a nostalgia é tratada da forma correta, o que A Link Between Worlds faz, felizmente, com imensa proeza.
Que fã de Zelda não ia gostar disso?
A decisão de usar o clássico do SNES como base para algo novo foi, sim, proposital e também teria sim, em parte, o intuito de agradar aos fãs da época dourada do Super Nintendo. Mas ao mesmo tempo era uma nova tentativa, um resgate ao passado, um recomeço. Em uma jogada que literalmente define o provérbio “olhar para o passado para entender o presente”, a Nintendo se desapegou das próprias correntes de tradição e de constante “evolução da franquia” que a prendia desde então e decidiu ousar. “E se pudéssemos mostrar ao mundo uma nova evolução de A Link to the Past, diferente da anterior que resultou em Ocarina of Time?”. “Como esse clássico se beneficiaria de toda a nossa experiência com a série até agora se ele fosse criado hoje?”.
Em uma decisão visionária, que é comparável ao feito que Kid Icarus: Uprising teve ao modernizar uma série mais antiga ainda ou ao mérito que Super Mario 3D Land teve de revitalizar a franquia olhando similarmente para o passado, A Link Between Worlds não nasceu como um produto da nostalgia, e sim uma obra que buscava reinventar padrões nos quais muitos já estavam acostumados. De muitas formas, A Link Between Worlds se assemelha muito a Luigi’s Mansion: Dark Moon (outro jogo abundante da famosa “magia Nintendo”), que tem por si só o mérito de ser um jogo à parte do original, melhorando suas mecânicas antigas e aproveitando-se da influência do precursor sem ignorar novos jogadores, novas tecnologias e novas possibilidades de mecânica.
Sem que nada indicasse, a Nintendo novamente estava demonstrando seu poderio na experiência de jogar e o seu gracioso domínio sobre suas próprias franquias que a permite ser flexível e desenvolta diante das expectativas de um público que muitas vezes mal sabe o que esperar. The Legend of Zelda: A Link Between Worlds, muito mais do que um dos melhores Zeldas já criados, é apenas um breve exemplo dos patamares que a “magia Nintendo” é capaz de alcançar ao destruir preconceitos e estabelecer uma perspectiva ainda nunca antes explorada, diante de uma situação que já parece concretizada e conservadora demais. Para quem acha que a Nintendo ainda tem motivos para se preocupar com o Wii U e seus outros serviços supostamente malsucedidos, está aí uma prova de que a sua singela relação com os fãs está longe de terminar.
Revisão: Vitor Tibério
Capa: Rafael Lam