Sem nenhum elo com o passado: como A Link Between Worlds reinventou a tradição e a nostalgia da franquia

em 29/12/2013

As melhores surpresas são justamente aquelas que envolvem a descoberta de um novo ponto de vista para surpreenderem. Essa frase resume bem... (por Anônimo em 29/12/2013, via Nintendo Blast)

As melhores surpresas são justamente aquelas que envolvem a descoberta de um novo ponto de vista para surpreenderem. Essa frase resume bem a sensação que foi descobrir The Legend of Zelda: A Link Between Worlds algumas semanas atrás mesmo dentre tantos motivos que ele, de outra forma, teria para não me causar nenhuma surpresa, o que, de início, também foi algo sentido por muitos fãs. Merecidamente um dos jogos indicados ao prêmio de jogo do ano, o mais novo título da série conseguiu superar barreiras conceituais e temporais e demonstra o domínio que a Nintendo ainda tem de sua mágica e única nostalgia. Descubra o que o jogo provou de tão especial e por que ele também pode se tornar para você!
Atenção: este texto possui revelações sobre o enredo (spoilers) de The Legend of Zelda: A Link Between Worlds. Leia por sua conta e risco!

O tesouro de uns…

Antes de já pularmos justificando os motivos de tanta aclamação e poder entender alguns fatores da forma como A Link Between Worlds foi encarado pelos fãs e pela mídia, é necessário que relacionemos a forma de como o jogo se compara ao seu “precursor espiritual” da era 16-bit.

Não é nenhuma novidade que A Link Between Worlds é uma sequência indireta de The Legend of Zelda: A Link to the Past, para Super Nintendo, um dos jogos mais aclamados pelos fãs da série, e para muitos a obra-prima da franquia. Nesse contexto, A Link Between Worlds também constrói suas próprias mecânicas, design e outras decisões de produto em cima de A Link to the Past, um jogo de mais de 20 anos de idade. Sem entrar no subjetivo assunto do quão atemporal o clássico do SNES realmente chega a ser (especialmente em comparação com obras como The Legend of Zelda: Ocarina of Time, por exemplo), ainda assim é difícil negar que muitas das decisões tomadas há tanto tempo levavam em conta, na verdade, limitações do SNES em reproduzir o que os desenvolvedores pretendiam. Desde coisas banais como uma visão planificada do mapa até problemas mais específicos como a limitação de oito direções (e só quatro de ataques da espada) provindas do controle digital do Super Nintendo, ele era um imenso esforço (longe de ser em vão) em evoluir a série desde seus primórdios do NES de uma forma épica e quase revolucionária como Super Metroid foi para o Metroid original ou Super Mario World foi para Super Mario Bros. 3.

Assim como os outros lançamentos da era, A Link to the Past era, antes de mais nada, um aperfeiçoamento técnico e mecânico da franquia
Assim como seus primos de outras franquias, A Link to the Past também sucedeu imensamente. A paleta gráfica rica em variedade de cores e áudio com mais canais sonoros do que os chiptunes do console antigo eram uma revolução técnica na velha época que a Nintendo se autopromovia como a mais avançada de todas, com seu slogan “Now you’re playing with super power”. Além de aspectos técnicos aprimorados, ele também revolucionava em alguns aspectos narrativos, trazendo uma trama muito mais presente e envolvente, com personagens que populavam o mundo de Hyrule e te guiavam pela história de uma forma mais imersiva. O que hoje em dia pode parecer, para alguns, conservador e até mesmo repetitivo na série um dia simbolizou um marco que viria a definir, junto com as outras franquias da era, os aspectos principais que ditariam os padrões da série nos anos seguintes.

É claro que, quando olhamos para trás por esse ângulo, vemos que a exigência em cima desse tipo de produto era bem mais sutil. Não existia uma preocupação em expandir o mercado e adaptar seus produtos a outros públicos através de meios novos e facilitados de se jogar porque, afinal, a indústria de videogames ainda estava dando seus primeiros passos e os que menos teriam de reclamar sobre a falta de novidades nos jogos eram justamente os consumidores que, na época, eram em sua maioria jovens e adolescentes. E é justamente por isso que é impossível negar que muitas das inovações de A Link to the Past ainda dependiam de dois fatores principais: da melhoria técnica que o SNES oferecia e que os consumidores buscavam, e da evolução das mecânicas da série, introduzidas no NES. O maior risco é que ambos esses fatores são facilmente superados por novos lançamentos da franquia. Ocarina of Time, por exemplo, pôde fazer uso dos fundamentos mecânicos do predecessor de 16-bit para construir um Zelda totalmente tridimensional (características de uma evolução técnica) em que, além de conter animações dinâmicas e outras melhorias narrativas, era possível equipar mais de um item a cada vez, mirar nos inimigos através do Z-Targetting e usar o escudo sem precisar guardar o item equipado (o que caracteriza avanços de mecânica). Todos esses elementos, que na época eram novidade em Ocarina of Time, também eventualmente vieram a se aperfeiçoar em títulos subsequentes, que se aproveitariam do precursor para evoluir a franquia.

Em destaque, a evolução gradual que a interface sofreu ao longo da série.
A Link to the Past também evoluiu outros aspectos herdados do Zelda de NES, mas também foi superado por Ocarina of Time em outros, e assim sucessivamente. (Clique para ampliar)
Nesse ponto de vista, A Link to the Past não fez nada mais do que sua obrigação como qualquer outro título da série, certo? Levar em conta mecânicas já estabelecidas e a tecnologia atual para criar novas aventuras com mecânicas aprimoradas e gráficos evoluídos é algo que todo jogo ao longo da série sempre se esforçou em fazer (cada um do seu próprio modo). Então por que, dentre todos eles, justamente ele deveria ser a base inspiradora para A Link Between Worlds, um jogo que sairia mais de 20 anos depois para um console com capacidades muito superiores ao do Super Nintendo? Pensar dessa forma não nos leva a acreditar que a série estaria regredindo ao ignorar a evolução natural dos outros jogos até hoje? Qual é o principal atrativo em um jogo que se baseia em algo “ultrapassado” e que já foi aprimorado antes de outras maneiras, num mercado que, em constante expansão, clama cada vez mais por novidades?

Um mockup da IGN, que combina Super Smash Bros. for 3DS e Monster Hunter 3, mostra como um novo título poderia se parecer no Nintendo 3DS caso a Nintendo tivesse optado por continuar a tradição evolutiva da série
A resposta da Nintendo, assim como onde estavam todas as suas fichas, é em um simples e perigoso elemento que ela, não obstante, sabe tratar excepcionalmente bem: a nostalgia.

Déjà vu

Em primeiro momento, A Link Between Worlds pareceu nos mostrar, antes de tudo, que o seu maior valor está, sim, agregado à nostalgia. Isso podia significar que a Nintendo estaria apostando mais em um elemento subjetivo e específico de cada tipo de pessoa do que com elementos mais concretos como, anteriormente dito, melhorias técnicas e mecânicas em prol da evolução da franquia. A técnica, nesse caso, estaria mais focada em vender um produto comparando-o a outro já conhecido e querido por um seleto público-alvo ao invés de ressaltar suas próprias qualidades como algo independente, mesmo que baseado em raízes antigas.

Mas o uso da nostalgia é uma faca de dois gumes e um elemento muito volátil de se manipular: a própria divulgação em massa pela mídia por parte da Nintendo não só causou um grande temor entre os fãs que eram excluídos desse público-alvo (como os que conheceram Zelda depois da era do Super NES), mas também para os próprios fãs que faziam parte exatamente desse público, com medo de que o jogo pudesse desfazer uma obra já primordialmente perfeita, já que em time que está vencendo não se mexe, ou que ele nunca alcançaria a grandiosidade e o legado do anterior.

Essa tirinha do Dorkly parodia exatamente o receio que o mercado teve durante um anúncio tão inesperado
O próprio teaser atrás da caixa do jogo nos mostra o principal ponto de venda: “Uma nova aventura no amado mundo de Hyrule!”. “Explore o Hyrule que ficou famoso em The Legend of Zelda: A Link to the Past!”. O título do jogo, em japonês, significa “A Link to the Past 2” e, com isso, as provas estão em todos os lugares. Mesmo assim, era pouco esclarecido o porquê da Nintendo apostar tanto em algo tão incerto como a nostalgia. É verdade que a premissa estava condizente com a prosposta do Nintendo 3DS de ser um portátil “hardcore”, no qual os fãs poderiam encontrar o que buscavam, e que a maioria dos jogadores originais de A Link to the Past também estão por volta dos seus 25 anos, o que é exatamente a média da base instalado no portátil que adotaria o produto. Mas e o resto da fanbase? Com uma decisão dessas, a Nintendo realmente estaria renegando os outros fãs da franquia que não conheceram a era do SNES (como no meu caso)? O que pensar de um produto que é destinado a agradar, supostamente, apenas a uma parcela do seu próprio mercado?

Se o chamariz de A Link Between Worlds era ser nostálgico, que graça teria para quem nunca de fato conheceu a referência? ...Muito mais do que se imaginava!
A opção de utilizar a nostalgia como um fator principal para vender seu produto foi uma estratégia arriscada, e essa é a característica fundamental para entender o porquê do jogo se provar tão superior às expectativas de todos, que já se mostravam abaladas com as decisões estranhas da Nintendo. Só não esperávamos que ela tinha tudo sob controle.

Mundos à parte

Meu primeiro contato com o jogo, além do contato indireto que gerou tantas dúvidas e preocupações através dos trailers de revelação pelo Nintendo Direct, foi através da sugestão de um amigo para experimentar o jogo no próprio 3DS dele. Era ainda a semana de lançamento do título e, carregado de todas as inseguranças e de todo ceticismo citados acima, eu duvidava muito não apenas que eu poderia gostar de tal produto, mas que ele sequer era voltado para agradar ao público que eu fazia parte. A maioria dos conhecidos que tinham adquirido o jogo logo na estreia também haviam jogado A Link to the Past em suas respectivas infâncias e, mesmo com a mesma incerteza, foram mais espontâneos na aquisição.

Mas algo estranho e bem inesperado já veio a acontecer nesse momento. Para começar, um elemento impossível de se provar até que se jogue: os controles. Contrariando completamente a noção que qualquer um teria ao compará-los com os controles limitados do Super Nintendo, os movimentos de Link no 3DS eram lisos e extremamente responsivos. Já era sabido que, dessa vez, as espadadas não estariam limitadas apenas a quatro direções, mas na prática esse conceito faz toda a diferença. Em questões de jogabilidade, o jogo me evocou outros títulos de portátil, como Spirit Tracks e Phantom Hourglass, mas sem todo o empecilho de se usar uma caneta. Esse aspecto apenas melhoraria com o tempo, quando eu finalmente daria uma chance ao adquirir o jogo e descobrir todo o resto sozinho, como a utilização do escudo pelo botão de ombro direito (o que não acontecia no precursor), a função de Quick Equip e outras funcionalidades que não se baseavam em designs limitados e antigos do predecessor do Super Nintendo. Já a mecânica de Merge, que era uma das únicas novidades no jogo em termos de jogabilidade, impressionantemente foi capaz de mudar a nossa tradicional e concretizada perspectiva diante dos antigos desafios que a série propunha e que ela própria apenas se preocupava em aprimorar ao invés de reinventar.

No fundo, o jogo inteiro tinha por objetivo quebrar perspectivas conservadoras e reinventar formas novas de encarar desafios velhos. O Merge é apenas uma das representações mais óbvias desse objetivo
A direção artistica também estavam longe de depender da arte limitada a uma paleta de cores restrita do SNES. O mundo é muito mais radiante, vivo e detalhado ao mesmo tempo que reflete as lembranças do clássico. Enquanto isso, o reflexo do Dark World, que dessa vez seria chamado de Lorule, era ainda mais interessante de se explorar graças as suas sutis diferenças. Os personagens mantêm um design familiar mas se abstêm de serem monótonos e sem expressão, aproveitando-se de toda a capacidade tridimensional do 3DS para atuarem em belas cutscenes. E a trilha sonora, incontestavelmente a melhor que toda a série já teve, era capaz de evocar uma sensação de nostalgia até mesmo em mim, que nunca sequer havia jogado A Link to the Past.

Que fã de Zelda não ia gostar disso?
Essa sensação surpreendente e bastante inesperada de “nostalgia fantasma” não era só mérito da música, e era exatamente essa sensação que me levaria a abrir os olhos sobre a genialidade e da capacidade da Nintendo de sempre nos surpreender. Mesmo que algumas trilhas trouxessem lembranças de outras fontes (como a música de Kakariko Village que foi herdada para Ocarina of Time, o famoso tema de Dark World que se faz presente em Four Swords Adventures e Super Smash Bros. Brawl ou o tema principal de Hyrule Field, que também é a música-tema da série), outros elementos menores ajudavam os fãs “excluídos” a se sentirem em casa, talvez até mais do que o próprio público pretendido. A máscara de Majora pendurada na parede de casa, as Ice Ruins que remetiam aos melhores momentos de Snowhead Temple de Majora’s Mask e similarmente a Turtle Rock, que lembrava em alguns aspectos as aventuras em Great Bay Temple. Como isso era sequer possível? É quase impossível explicar a lógica que uma coisa tem com a outra, mas isso ocorre justamente porque a nostalgia é um sentimento subjetivo às memórias e sentimentos de cada pessoa que a sente: quando não existe nada para se recordar, a mente trata de relacionar a experiência mais próxima que já se teve daquilo e aplicar a mesma sensação nessa memória. Isto, claro, quando a nostalgia é tratada da forma correta, o que A Link Between Worlds faz, felizmente, com imensa proeza.

Não existe relação nenhuma entre as Ice Ruins e o Snowhead Temple, mas como a nostalgia se trata de um sentimento, ela dificilmente pode ser de fato explicada. O mais impressionante é que isso ainda não impede que a Nintendo se supere ao utilizá-la em A Link Between Worlds
Foi quando finalmente notei que tudo isso fora planejado e tudo se desenrolou e ficou mais evidente. Mesmo sendo usado de base conceitual, A Link Between Worlds e A Link to the Past tinham “mundos à parte” de diferenças e cada um tinha o seu próprio motivo, também bastante diferente, para existir.

 A decisão de usar o clássico do SNES como base para algo novo foi, sim, proposital e também teria sim, em parte, o intuito de agradar aos fãs da época dourada do Super Nintendo. Mas ao mesmo tempo era uma nova tentativa, um resgate ao passado, um recomeço. Em uma jogada que literalmente define o provérbio “olhar para o passado para entender o presente”, a Nintendo se desapegou das próprias correntes de tradição e de constante “evolução da franquia” que a prendia desde então e decidiu ousar. “E se pudéssemos mostrar ao mundo uma nova evolução de A Link to the Past, diferente da anterior que resultou em Ocarina of Time?”. “Como esse clássico se beneficiaria de toda a nossa experiência com a série até agora se ele fosse criado hoje?”.

Em uma decisão visionária, que é comparável ao feito que Kid Icarus: Uprising teve ao modernizar uma série mais antiga ainda ou ao mérito que Super Mario 3D Land teve de revitalizar a franquia olhando similarmente para o passado, A Link Between Worlds não nasceu como um produto da nostalgia, e sim uma obra que buscava reinventar padrões nos quais muitos já estavam acostumados. De muitas formas, A Link Between Worlds se assemelha muito a Luigi’s Mansion: Dark Moon (outro jogo abundante da famosa “magia Nintendo”), que tem por si só o mérito de ser um jogo à parte do original, melhorando suas mecânicas antigas e aproveitando-se da influência do precursor sem ignorar novos jogadores, novas tecnologias e novas possibilidades de mecânica.

Apenas depois de considerar esses pontos que seria possível entender que A Link Between Worlds não se tratava apenas de mero fanservice, mas sim de uma revitalização dos padrões demasiadamente conservadores da série, de modo similar ao que foi feito com Super Mario 3D Land e Kid Icarus: Uprising.
Sem que nada indicasse, a Nintendo novamente estava demonstrando seu poderio na experiência de jogar e o seu gracioso domínio sobre suas próprias franquias que a permite ser flexível e desenvolta diante das expectativas de um público que muitas vezes mal sabe o que esperar. The Legend of Zelda: A Link Between Worlds, muito mais do que um dos melhores Zeldas já criados, é apenas um breve exemplo dos patamares que a “magia Nintendo” é capaz de alcançar ao destruir preconceitos e estabelecer uma perspectiva ainda nunca antes explorada, diante de uma situação que já parece concretizada e conservadora demais. Para quem acha que a Nintendo ainda tem motivos para se preocupar com o Wii U e seus outros serviços supostamente malsucedidos, está aí uma prova de que a sua singela relação com os fãs está longe de terminar.

Revisão: Vitor Tibério
Capa: Rafael Lam

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