Nós já conhecemos o passado do nosso entrevistado desde os tempos de colégio. Na segunda parte da entrevista, ficamos sabendo um pouco mais sobre o começo de sua carreira. Por fim, ele irá contar um pouco sobre o processo de planejamento de alguns dos seus games mais inovadores. Mas, há uma pergunta que não quer calar... Será que ele finalmente vai falar sobre The Wonderful 101?
O Deus do videogame aparece
Iwata: Para mim, parece que a cada novo projeto, você faz algo completamente diferente. De onde você tira tanta inspiração?Kamiya: Hum... Para ser honesto, eu não faço a menor ideia. Sinto muito! (risos)
Iwata: Várias pessoas se analisam para poder falar delas mesmas, mas não são muitas que apenas dizem que não fazem a menor ideia. (risos)
Kamiya: É verdade.
Iwata: Porém, ao conversar com você hoje, eu tive a sensação de que isso faz parte da sua essência, definindo a maneira como você cria os jogos — ao refletir sobre suas experiências conforme toma decisões — a forma e como esse processo continua a se desenvolver.
Kamiya: Eu tenho ajuda da sorte. Sou muito abençoado pelas pessoas e pelo ambiente à minha volta. Mesmo depois daquele problema com o Resident Evil 2, eu tive que passar por muitos obstáculos com o Viewtiful Joe e o Okami, e gastei muito tempo com tentativas e erros. Eu só achei as respostas corretas graças a esse ambiente.
Iwata: Quando você acha a resposta certa é como se você estivesse testando várias coisas e repentinamente pensasse: “Ah! É isso!”
Kamiya: Exatamente. Por exemplo, no começo do desenvolvimento de Okami, estávamos usando gráficos realistas. Eu nasci em Nagano, então queria fazer um jogo inovador, que acalmasse a alma. Mas se o fizesse em um vasto cenário aberto, você iria querer percorrê-lo todo, não é? Assim, ele precisaria de fases imensas, e a densidade do conteúdo inevitavelmente se dissolveria.
Iwata: Não haveria nenhum limite.
Kamiya: Mas então, um dos membros da equipe desenhou o design de Amaterasu, personagem principal, usando um estilo japonês chamado Sumi-ê, que tem um efeito de pincel. Quando eu vi aquilo, de repente me pareceu que o mais apropriado seria fazer tudo nesse estilo japonês.
Iwata: A ideia apareceu bem na hora certa.
Kamiya: Representar a natureza com um estilo japonês não era comum, portanto era muito inovador. Eu disse para o Atsushi Inaba, produtor do jogo, que eu queria fazer uma mudança drástica. Então, tomei coragem e fiz. Mas mesmo depois disso, ainda não conseguia decidir que tipo de jogo eu queria que ele fosse.
Iwata: O visual havia se consolidado, mas somente isso não faz um jogo.
Kamiya: Em partes, era como um simulador. Estávamos colocando elementos como campos e estradas, construindo casas, mas, até esse ponto, o que tínhamos não estava nem um pouco divertido. Os dias passavam e eu continuava a imaginar o que ele deveria ser.
Iwata: O processo é parecido com o que Animal Crossing passou. Nós ficamos bastante tempo raciocinando sobre ele, fazendo diversas tentativas, antes que alcançássemos seu formato atual.
Kamiya: Ah, é verdade?
Iwata: Atualmente, ele parece entusiasmante, mas o desenvolvimento do primeiro foi um trabalho duro. (risos)
Kamiya: Foi a mesma coisa para nós! (risos) Até que um dia, cansado de assistir a tudo isso, o Inaba explodiu e disse: “O que vocês vão fazer em relação a esse game?!” Claro que estávamos pensando nisso até então, mas havíamos estagnado. Isso aconteceu antes de um fim de semana de três dias, então uns 10 membros principais da equipe se reuniram e se concentraram arduamente durante esse recesso.
Iwata: Como se fosse um mini retiro de trabalho.
Kamiya: Exato. O clima na sala de reunião foi horrível no primeiro dia. Não surgiu absolutamente nenhuma boa ideia.
Iwata: Momentos como esse podem ser bem sombrios. O que te preocupava exatamente?
Kamiya: O primeiro vídeo promocional que fizemos mostrava a personagem principal, Amaterasu, correndo por um campo enquanto plantas e árvores brotavam ao seu redor. Nós tínhamos um jogo dinâmico e inspirador em mente. A princípio, havia a ideia de Amaterasu como um lobo, e como uma deusa, mas nós tivemos problemas para descobrir o que uma deusa era capaz de fazer.
Iwata: Entendi.
Kamiya: Tudo mudou no segundo dia. Alguém, de repente, disse: “Uma deusa pode fazer qualquer coisa” E isso fazia sentido perfeitamente.
Iwata: Ahh, “o que uma deusa pode fazer” mudou para “ela pode fazer qualquer coisa”.
Kamiya: Exatamente. Ela pode mais do que apenas fazer plantas crescerem. Eu tive outra grande ideia nesse momento. Já que o visual do jogo é como se fosse o de uma pintura com tinta e pincel, eu disse: “ Se desenharmos uma árvore, ela aparece. Então, que tal se desenhássemos a trajetória do vento, e ele soprasse nessa direção?” O clima na sala de reunião mudou completamente. Todos se empolgaram, dizendo que era uma boa ideia, e escrevemos um projeto de planejamento antes que o dia acabasse. Eram apenas duas ou três páginas, mas eram o suficiente. Anteriormente, quando não sabíamos o que fazer, ele tinha dezenas de páginas! (risos)
Iwata: Você estava preocupado, então ficou adicionando várias coisas. Mas os melhores planejamentos são curtos, contendo apenas a ideia principal do jogo.
Kamiya: Isso mesmo. Mesmo sem explicações desnecessárias, o game se desenvolve naturalmente em torno da sua ideia principal. No terceiro dia, nós estávamos organizando o conteúdo baseado no planejamento, e quando eu expliquei as novas ideias para a equipe no começo da semana, o rosto de todo mundo se iluminou. Finalmente, eu tinha certeza de que o jogo seria divertido. Com isso, fizemos de Okami o game que ele é hoje.
Iwata: Graças ao Inaba ter perdido a cabeça.
Kamiya: (risos) Ele também gritou conosco para que nos juntássemos quando fizemos Viewtiful Joe. Todo mundo se reuniu no fim de semana para pensar sobre o jogo, e o resultado foi o nascimento do sistema de poderes VFX.
Iwata: Hã? Foi assim que ele surgiu?! Mas os poderes VFX são a parte principal do jogo!!
Kamiya: Pois é, mas eles não existiam até então. Meu games costumam seguir esse caminho, a ideia principal não está no planejamento desde o começo. Nós criamos o jogo com inspiração e sorte, e se trabalharmos duro, em algum momento o deus dos videogames aparece para ajudar.
Iwata: Hum... Mas o deus dos videogames apenas aparece nos fins de semana no último instante.
Kamiya: Isso mesmo! (risos) Eu realmente deveria começar a pensar nisso mais cedo.
Iwata: Mas eu realmente acho que você tem a impressionante habilidade de receber a inspiração no momento crucial e de não deixar o que você encontrou partir.
Kamiya: Pode ser, se você colocar isso de maneira positiva. O poder Slow, em Viewtiful Joe, foi assim. Um programador, que por acaso estava sentado perto de mim, estava testando a movimentação e movendo o Joe em câmera lenta.
Kamiya: O Slow surgiu pois eu disse: “Ei! O que você está fazendo?! Isso é legal!” E deixei ele colocar isso no jogo.
Iwata: Eu sabia. Você é bom em tirar inspirações importantes das circunstâncias ao seu redor.
Kamiya: Bom, deve ser porque elas não vem da minha cabeça! (risos) Acho que The Wonderful 101 foi uma exceção, já que o concluímos de forma relativamente parecida com a proposta original.
Iwata: Exato. (risos) Embora mal tenhamos começado o assunto, graças a nossa conversa individual de hoje, eu tenho uma boa ideia da experiência que te trouxe até aqui. A sua história é muito interessante. Na próxima parte, gostaria de perguntar tudo sobre The Wonderful 101. Muito obrigado!
Kamiya: Eu que agradeço!
Embarque na nossa máquina do tempo e de uma volta no passado de Hideki Kamiya na primeira parte da entrevista!
Fonte: Iwata Asks - Nintendo
Revisão: Samuel Coelho
Capa: Hugo Henriques Pereira