Três décadas depois do primeiro game do Mario, dois homens aprendem que, no mundo de Donkey Kong, só um pode reinar...Hoje em dia, a série Mario já está bem madura, veterana, completamente estruturada sobre suas próprias bases; já tem uma quantidade incontável de fãs, vendeu mais de 260 milhões de cópias em todo o globo e ainda consegue nos encantar com o resultado puro e íntimo da evolução do universo dos vídeogames e o símbolo imaculado da jogabilidade e atração oferecida pelo entretenimento interativo. Mas antes de ser o famoso plebeu de macacão que salva princesas em reinos quiméricos, o encanador bigodudo da Nintendo já caiu de mala, cuia e maus bofes em construções de risco em Nova York para duelar contra um macaco gigante que só lhe causava problemas — Donkey Kong. E foi com esse nome que surgiu o primeiro jogo do Mario de todos os tempos, que, mesmo com tanta simplicidade, conseguiu ser referenciado em vários veículos culturais americanos (desde menções nas canções de DJ Jazzy Jeff & The Fresh Prince e Trace Adkins até aparições em Os Simpsons e Os Padrinhos Mágicos) e reunir uma horda de ávidos jogadores que, entre si, disputavam pela maior pontuação do clássico de 1981. Uma dessas competições acabou ficando séria — como destaca o documentário The King of Kong: A Fistful of Quarters, lançado em 2007.
O Rei do Kong
No começo dos anos '80, um jovem chamado Billy Mitchell conseguiu atingir a marca de 874.300 pontos em Donkey Kong, um recorde que perdurou por volta de 25 anos. Desnecessário dizer que o cabeludo se tornou uma lenda.
The King of Kong: A Fistful of Quarters, do diretor Seth Gordon, é focado na jornada do humilde professor de ciências Steve Wiebe, de Washington (EUA), na tentativa de abater o recorde de Billy Mitchell e entrar para o livro dos recordes — uma meta que teve início em 2003, quando Wiebe tomou ciência do recorde de Billy Mitchell e passou a jogar Donkey Kong todas as noites em busca de aprimoramento e excelência. E o que antes era um costume acabou se tornando perfeição: não somente Wiebe conseguiu ultrapassar o recorde de Mitchell, como também atingiu a inacreditável marca de 1.006.600 pontos. Após a divulgação de seu recorde no Twin Galaxies, uma organização dedicada à coleta e avaliação de pontuações da indústria de entretenimento interativo, a mídia de Seattle logo transformou Steve numa celebridade, chamando a atenção do mundo todo e retomando o respeito de todos os que duvidaram de suas conquistas. E quem diria que um carpinteiro baixinho teria tanta disposição para abater um gorila gigante?
A Revolta de Billy Mitchell
A notícia sobre a quebra do recorde de décadas chegou a Billy Mitchell como uma martelada. E mal sabia Wiebe que o Jogador do Século — como Billy Mitchell já era apelidado desde 1982 — não deixaria barato e chegaria ao ponto de enviar seu pupilo Brian Kuh, um banqueiro aposentado e jogador profissional de fliperamas, para investigar a máquina de Wiebe. A teoria era a de que a placa de circuito interno do arcade de Wiebe teria sido fornecida por Roy Shildt, um artista que alegava ter o recorde do game Missile Command, de 1980, até este ser quebrado por Billy Mitchell — que se tornou seu nêmesis por anos a fio na disputa pela melhor pontuação no shoot'em up. Mitchell impediu que o esforço de Shildt fosse oficialmente reconhecido pelo Twin Galaxies, levando Shildt a planejar formas de vingança clandestinas contra Mitchell desde então.
Baseado nesta associação entre Steve Wiebe e Roy Shildt, havia a suspeita de que a placa de circuito do pobre Steve Wiebe fora adulterada, de forma que sua pontuação em Donkey Kong poderia ter sido desonesta. Isso, é claro, não passou de uma forma de contestação contra Wiebe, mas foi o bastante para obrigar o professor de ciências a provar suas habilidades no Funspot Family Fun Center — um "museu" de arcades localizado em Laconia, New Hampshire (EUA) — em frente a Walter Day, o fundador da Twin Galaxies, e de um punhado de espectadores. Também crescia a esperança de ficar face-a-face com o lendário Billy Mitchell.
Embora o Jogador do Século não tenha dado as caras para testemunhar o recorde de Steve Wiebe, ele enviou Brian Kuh para ficar de olho em seu lhano desafiante. Kuh é visto reunindo pessoas para ver a kill screen — a mítica tela da morte de Donkey Kong, que aparece no 22º estágio e na 117ª tela do game.
No Funspot Arcade, Wiebe finalmente atingiu a tela da morte e obteve um recorde mundial de 985,600 pontos. Entretanto, naquele mesmo instante, Mitchell enviou um vídeo de si mesmo jogando Donkey Kong e atingindo a marca de 1.047.200 pontos no mesmo game. Mitchell, o próprio Jogador do Século, que não suportava recordes gravados em fitas de vídeo não supervisionadas por comissões julgadoras, acabou se contradizendo e fazendo a mesma coisa que condenava. Ao contrário do que aconteceu com Wiebe, porém, a fita de Mitchell foi aceita pela Twin Galaxies e o cabeludo retomou seu lugar como o recordista mundial do arcade do gorilão maluco.A Tela da Morte
Como funciona? Diferente de muitos outros jogos de arcade que também chegam ao ponto de ter uma kill screen, a tela da morte de Donkey Kong não acontece devido a um transbordamento de números inteiros no contador de nível; os programadores do jogo trabalharam para impedir esse problema. O que acontece mesmo é um descuido diferente da parte dos desenvolvedores envolvendo o contador de tempo. A quantidade de tempo permitida para qualquer tela de Donkey Kong é determinada matematicamente de acordo com o nível em que o jogador está. O timer do jogo é calculado pela equação 100x(10x(número do nível + 4)), e possui um valor máximo de 8.000. Quando o nível chegar a 22, o jogo lerá o cálculo 100x(10x(22+4)), ou o mesmo que 100x260; no entanto, o contador de 8 bits rola a 256, e o jogo calcula apenas 100x4.
Com isso, o timer será ajustado a um nível tão baixo que o jogador terá apenas 7 segundos para passar de fase — o que, simplesmente, não é tempo o suficiente para que o jogo seja completado. Que macacada!
No Trono do Gorila
Nove meses depois, Wiebe embarcou em uma nova tentativa de entrar para o livro dos recordes em Hollywood, na Flórida, próximo ao lar de Billy Mitchell; mas somente no epílogo do documentário, dentro de sua garagem, Wiebe conseguiu chegar a 1.049.100 pontos no arcade.
Como fazer parte dessas competições, e qual é o melhor método para conquistar excelência em Donkey Kong? É uma questão que Robert Mruczek, diretor de julgamento do Twin Galaxies, esclarece aos interessados. "Reconhecimento de padrão e memorização são a chave", revela. "Se você não sabe qual será o próximo padrão do evento Light Cycle de Tron, você perderá uma vida".
A Kongtrovérsia
O recorde gravado por Mitchell foi descartado após o evento da Funspot. Walter Day inclusive divulgou um pedido de desculpas "pelo erro de aprovar esta fita de vídeo sem o benefício de um processo de verificação completo". Você pode conferir o pedido de desculpas diretamente de Walter Day, no fórum oficial da Twin Galaxies. Tanto os relatos de Day quanto os do diretor Seth Gordon confirmam que o documentário teve várias inexatidões, criando um retrato novo e sensacionalista para os personagens e eventos da vida real.
Mesmo com tudo em mente, The King of Kong: A Fistful of Quarters é um documentário simplesmente incrível. O que a princípio se resumia a uma batalha entre dois jogadores em uma calorosa disputa para firmar seu recorde em um game de fliperama acabou se tornando uma história íntima sobre um homem contra um império; sobre o quanto um homem mediano deve lutar para garantir um lugar num mundo sistemático. Atualmente, após centenas de jogos produzidos e de uma série de padronizações específicas, Mario pode ser considerado sinônimo de sucesso; mas seu primeiro game da história, lançado há mais de 30 anos, continua dando preciosas lições de vida a quem se propuser a aprendê-las.
Revisão: Lucas Oliveira