“Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. A famosa frase de Lavoisier, de tão usada, pode parecer banalizada, mas ainda é uma boa representação não apenas da natureza, mas das criações humanas. Todas as obras artísticas e intelectuais criadas atualmente devem algo às muitas que vieram antes, e estas a outras, ainda mais antigas. Os jogos digitais com certeza não são exceção a esta regra.
Um conto japonês
Estas inspirações e referências não são negadas, sabemos que nenhum jogo é criado apenas com elementos cem por cento originais, e a dita “originalidade” de um título normalmente está ligada a utilização de velhos conceitos de novas maneiras. Esta utilização também aparece em diferentes níveis, podendo ser de uma referência direta até a mais antiga das mecânicas, escondida nos jogos há gerações.
Nos focando nas referências, elas podem aparecer por coincidência, inspiração ou até mesmo como uma forma de homenagem. O que determinará se conseguiremos percebê-las é a maneira como foram implementadas e em que contexto estão inseridas. Provavelmente quem jogou The Legend of Zelda: Skyward Sword, não teve problemas em identificar a brincadeira que os desenvolvedores fizeram com Titanic, ou mesmo homenagens a outros jogos da série.
Existem outras referências, contudo, que acabam passando desapercebidas pela maioria dos jogadores, ainda mais quando não são tão diretas e esbarram em diferenças culturais. Isto não impede, entretanto, que enriqueçam uma obra do mesmo jeito. Permitam-me usar como exemplo O Fio da Aranha, um pequeno conto escrito em 1918 por Ryūnosuke Akutagawa, considerado o pai dos contos japoneses, para a revista infantil Akai Tore. A história é assim...
O Fio da Aranha
Durante uma bela manhã, Buda passeava pela beira de um lago de flores de lótus no paraíso. Os lótus brancos estavam florescendo, espalhando pelo ambiente uma ótima fragrância. Após um tempo, Buda parou e começou a observar um ponto encoberto por algumas folhas no lago. Naquela região era possível enxergar, através da água cristalina, o inferno.
Um homem em específico, em meio a tantos outros pecadores nas profundezas do inferno, chamou a atenção de Buda. Seu nome era Kandata, que fora famoso por ser um grande ladrão com o hábito de assassinar suas vítimas e incendiar casas, entre outras maldades. Na verdade, em toda a sua vida, Kandata havia realizado apenas uma boa ação: uma vez, enquanto caminhava, encontrou uma aranha passando pela estrada. Quando estava prestes a esmagá-la com seu pé, a ideia de acabar com uma vida tão pequena sem motivo algum o fez desistir, poupando a pobre criatura.
O bondoso Buda, lembrando desse ato de Kandata, resolveu usá-lo para salvá-lo do sofrimento do inferno. Numa das flores de lótus, ele avistou uma aranha e, tomando-a em suas mãos, a enviou para a descida até o inferno.
Kandata estava mergulhado no Lago de Sangue juntamente com os outros pecadores. A escuridão era total, exceto por clarões ocasionais que apenas serviam para iluminar por um momento a Montanha de Agulhas. O silêncio era apenas interrompido por alguns gemidos dos amaldiçoados: aqueles que mereciam estar num lugar tão horrível sofriam tantos tormentos que não tinham forças nem para chorar.
Qual não foi a surpresa de Kandata quando percebeu, acima de sua cabeça, uma aranha prateada, presa unicamente por um fio cuja outra ponta estava tão alta e distante que era impossível avistá-la. O ladrão apenas conseguiu bater as mãos em alegria: se ele conseguisse subir pelo fio, talvez escapasse do inferno! Talvez até mesmo alcançasse o paraíso!
Assim sendo, agarrou o fio com as duas mãos e começou a escalada, cada vez mais alta. Como havia sido um ladrão habilidoso, já tinha enfrentado este tipo de desafio várias vezes. A distância entre o inferno e o paraíso é de dezenas de milhares de quilômetros, então após escalar por um bom tempo, Kandata se viu obrigado a parar para descansar e aproveitou para olhar ao redor. Ele percorreu um bom trecho, o Lago de Sangue não era mais visível e já estava mais alto que a Montanha de Agulhas. Naquele ritmo, talvez fosse mesmo possível escapar do inferno, e após tantos anos de silêncio ele exclamou: “eu consegui, eu consegui”.
Ao olhar para baixo, contudo, Kandata percebeu que uma longa linha de pecadores fazia o mesmo caminho que ele, subindo pelo fio da aranha. Ele ficou paralisado por instante: como o fino fio aguentaria o peso de todos? Se algo não fosse feito rápido, certamente a linha arrebentaria e todos cairiam o percurso até o fundo do inferno e seus esforços teriam sido inúteis.
Kandata gritou: “Ei, seus pecadores! Este fio é meu! Quem disse que vocês poderiam escalá-lo? Saiam! Saiam!”. Apesar do fio estar aguentando firme até então, no momento em que estas palavras foram proferidas ele se partiu bem onde Kandata segurava-se, que caiu de cabeça na escuridão. Tudo que restou foi o final da linha prateada, suspensa até o paraíso.
Buda estava parado na beira do lago acompanhando os eventos. Após ver Kandata afundar como uma pedra no Lago de Sangue, ele continuou seu pequeno passeio com uma expressão triste. Devia estar surpreso por, mesmo com as duras punições, a falta de compaixão de Kandata o levar de volta ao inferno.
As flores de lótus estavam totalmente alheias a estas questões, e continuaram a flutuar sob os pés de Buda, continuamente liberando o aroma responsável pela incrível fragrância do local. Era quase meio-dia no paraíso.
Texto traduzido e adaptado do site Translations & Such. Texto original do japonês de Ryünosuke Akutagawa.
A Antiga Cisterna
Atenção: a partir deste momento, o texto pode apresentar spoilers de The Legend of Zelda: Skyward Sword, leia por sua conta e risco.
Se você jogou Skyward Sword, talvez tenha achado o conto acima familiar. Muitos jogadores reconheceram a Ancient Cistern (Antiga Cisterna), construção próxima ao Lake Floria em Faron Woods, acessada durante a busca pelas chamas sagradas e espécie de “dungeon de água” e “dungeon de sombras” do game, como uma representação do paraíso e do inferno.
A área principal luminosa, coberta com água límpida, contrastando com uma parte subterrânea escura, cheia de ossos, uma água roxa que causa danos e zumbis, embasa essa tese. Mas basta um olhar mais atento para perceber a clara inspiração que a Nintendo buscou em O Fio da Aranha para a construção dessa dungeon. Não bastasse o cenário de antítese, o “paraíso” e o “inferno” da Antiga Cisterna nos lembram os da história.
Há uma enorme estátua central semelhante a Buda cercada de água, e flores presentes em todo o cenário. É um local muito tranquilo e a luminosidade deixa o ambiente dourado. Já quando descemos para a parte subterrânea do dungeon, nos deparamos com um cenário escuro, culminando numa espécie de caverna cheia de ossos, com vários Cursed Bokoblins (versão zumbificada dos Bokoblins, inimigos comuns do jogo) e com um lago de um líquido vermelho escuro que pode lembrar o Lago de Sangue do conto. Além disso, este é o lar de Skullwalltulas e Skulltulas, tradicionais inimigos aracnídeos da série.
Não se convenceu? Ainda há um último argumento para quem acha que são apenas coincidências. Como escapamos da parte subterrânea do dungeon? Subimos por um fio de aranha, seguidos por Cursed Bokoblins, e saímos diretamente na parte principal da construção. Felizmente Link é um bom sujeito e a linha não se partiu.
Mas além da bela lição do conto, o que podemos aprender disso tudo? Que quando criamos algo, seja um game, um filme, um livro ou qualquer outra coisa, é possível resgatar elementos interessantes de outras obras sem a necessidade de reproduzir a inspiração. Vejam como é comum enredos de games inspirados em outras histórias, especialmente em elementos mitológicos. Toda vez que você encontra um dragão em um game, é a mitologia sendo empregada em tempos modernos para seu divertimento. Mais que isso, jogos como God of War e Okami são totalmente estruturados sobre mitos, no caso gregos e japoneses, respectivamente.
Agora, com o exemplo de O Fio da Aranha e a Antiga Cisterna, fica claro que essas inspirações podem ser manipuladas para a criação de algo “totalmente” novo. Em nenhum momento de Skyward Sword o enredo, diálogo, personagens ou história principal usa diretamente o conto de Akutagawa, mas mesmo assim ele está lá, representado como uma das dungeons favoritas de quem jogou o game. Quem sabe que outros segredos os jogos guardam?
Analógico, o que é isso?
Você que chegou até o final do texto, parabéns! Talvez esteja se perguntando o que a palavra “Analógico” está fazendo antes do título da matéria. Bom, Analógico era uma antiga coluna aqui do Nintendo Blast que abordava “comportamento gamer, análise de roteiros de jogos e desenvolvimento de personagens“. Depois de um longo hiato, ela está voltando, e se você pesquisar pelo site perceberá que alguns textos anteriores foram “convertidos” para a coluna, não deixe de dar uma olhada! Então já sabem qual o assunto quando esta palavra aparecer, espero que gostem!
Revisão: Alex Sandro