Quando estamos jogando, lendo ou assistindo a um filme ou programa, em geral não nos preocupamos com algumas coisas absurdas que acontecem nessas obras. O que nos faz aceitar tão facilmente que encanadores cresçam quando comem cogumelos ou que beber algum remédio genérico possa curar totalmente alguém?
Dá para acreditar?
A reação das pessoas mencionada acima recebeu o nome de suspensão de descrença, que basicamente refere-se a uma disposição voluntária dos espectadores de uma obra de ficção em abrir mão de certas premissas da realidade, como, digamos, a lei da gravidade, e passe a aceitar aquelas que são apresentadas pela história, não importando se são possíveis ou não. Você renuncia o julgamento racional que faria no mundo real (dizendo ao seu amigo que ele não irá voar se sair pela janela, por exemplo), esperando receber entretenimento em troca.Como bons curiosos, vocês devem estar se perguntando (ou não) como surgiu essa expressão. Pois bem, o primeiro a usá-la foi o poeta, crítico e ensaísta inglês Samuel Taylor Coleridge, em sua Biographia Literaria, de 1817. Como o próprio escreveu:
"... Foi aceito que meus esforços devem ser dirigidos a pessoas e personagens sobrenaturais, ou pelo menos românticos, mas de forma que transfira da nossa natureza interior um interesse humano e uma aparência de verdade suficientes para obter dessas sombras da imaginação a suspensão voluntária da descrença por um momento, o que constitui a fé poética.” - Samuel Taylor Coleridge, Biographia LiterariaEsse conceito, é claro, não era totalmente novo, pois já era percebido desde a antiguidade, especialmente na Roma antiga, mas Coleridge deu destaque ao assunto.
Agora você está em outro mundo
E qual a importância disso tudo? A suspensão de descrença é especialmente significativa para a ficção, ou de outra forma a nossa capacidade de criação seria extremamente limitada. Imagine como seriam nossas histórias se exigíssemos uma grande verossimilhança, e tudo precisasse ser feito de acordo com a realidade. Poderíamos dar adeus à maioria das grandes obras, em todos os gêneros. Mesmo um enredo com a ação num mundo comum e pessoas normais necessita de alguns escapes para fluir, e então não precisamos nos preocupar tanto em como nosso personagem principal faz para ir no banheiro e outros fatos não tão importantes.Nos videosgames, esse fenômeno é claro. Se o Link consegue transportar todos aqueles itens embaixo de uma túnica verde, ótimo. Talvez onde vivemos isso não seja possível, mas, bem, Link vive em Hyrule, lá isso pode ser feito e ponto final, até porque ninguém gostaria de ter a tela da TV tapada por uma bolsa enorme recheada de itens. Mesmo em simuladores, que inclusive possuem fãs que defendem que quanto mais realístico, melhor, ainda existem coisas bem diferentes da realidade. Ou você acha que uma guerra em Modern Warfare é igual a uma de verdade?
Não, os jogos simplesmente não funcionariam se precisassem ser fiéis ao nosso mundo, até mesmo por questões de mecânica. O que acontece se falarmos com algum personagem e, logo após, falarmos novamente? Quase sempre ele repetirá exatamente o que disse antes, não importa quantas vezes seja necessário, bem diferente do que aconteceria na realidade. Essa é uma decisão tomada para que o jogador possa acessar novamente uma informação caso precise, e nós aceitamos isso. Outras quebras de realidade, como alienígenas falando inglês, baús de tesouro em locais aleatórios ou poder saltar de grandes alturas sem se machucar são decisões tomadas para facilitar a experiência.
Quebrando a suspensão
Apesar do que foi dito anteriormente, a suspensão de descrença nem sempre ocorre como deveria, por culpa do autor, na maioria das vezes. Afinal, se ela é voluntária, o público não engolirá qualquer coisa.Considere isso: a suspensão de descrença libera a ficção de precisar ser fiel à realidade, então temos total liberdade para criar novos universos onde animais falam, carros voam e mágica existe. Estamos abertos para essa “nova realidade”. Mas isso não quer dizer que qualquer fato será aceito.
Assim como um animal falante não faz sentido no nosso mundo, num outro onde animais falam, alguns deles serem mudos que não faz sentido (o que inclusive cria aquele tipo de discussão sobre porque o Pateta e o Pluto, da Disney, são tão diferentes, embora sejam ambos cachorros). Em suma, um universo ficcional não precisa atender às leis da nossa realidade, mas sim da sua própria. Daí vem o pensamento popular de que “você pode pedir à audiência que aceite o impossível, mas não o improvável”. A história precisa funcionar dentro de sua própria lógica, transformar nosso impossível em normal e mantê-lo consistente.
O que não falta são exemplos de enredos que se contradizem, até porque não é fácil criar vários elementos e encaixá-los como se existissem naturalmente. Certas decisões quase certamente causarão uma perda na suspensão pela inserção de algo desconexo na história, resultando, por exemplo, em Deus Ex Machina.
Nesse ponto, algumas pessoas podem ficar um pouco confusas. Afinal, estamos dizendo que existe total liberdade para a criação de um mundo, mas ao mesmo tempo ele obedece algumas regras. Então por que qualquer coisa que acontecesse não poderia ser aceita? Porque, apesar de diferente do nosso, esse mundo criado ainda obedece regras, as suas próprias, que surgiram junto com ele. Logo, é razoável aceitar que elementos destoantes causem estranheza ou até mesmo desconforto, não por serem inventados, mas por não harmonizarem com o resto da obra. Por isso, inclusive, que uma comédia que use esses “absurdos” como piadas não sofrerá com esse problema, já que uma de suas regras é a utilização desses recursos.
Jogar, ler e assistir a filmes é muito bom, e pode ser uma experiência ainda mais interessante se sabemos um pouco mais sobre o “interior” desses meios. Suspensão de descrença é um conceito bastante discutido e nos permite entender ainda mais como funcionam as narrativas.