“Se você vê algo que... parece um humano mas não é, mantenha seus olhos nisso e a sua machadinha por perto.” - Sr. Castor, O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa
Um fato inegável: a computação gráfica evoluiu de forma incrivelmente rápida e eficiente, e a melhor maneira de perceber isso é comparar as diferentes gerações de videogames. Começamos com alguns poucos pixels brancos e pretos na década de 50 e hoje contamos com visuais que se aproximam muito do mundo que vemos ao abrir uma janela. Sim, a aparência dos videogames está cada vez mais real. Apesar disso, você nunca sentiu que os personagens estão mais “artificiais”? Às vezes não parece que há algo de errado com aquele soldado ou jogador de futebol?
Existe uma explicação para essa sensação, a teoria do “Uncanny Valley”, ou “Vale Estranho”, que você conhece a seguir.
Uma breve história do Uncanny Valley
O roboticista japonês Masahiro Mori, em 1970, estava com um problema. Seus robôs, à medida que deixavam de parecer meras máquinas e adquiriam feições humanas, chamavam muito mais atenção e atraiam a simpatia das pessoas. Pela lógica, então, quanto mais semelhantes a um humano normal, mais populares eles seriam. Surpreendentemente, entretanto, quando os seres de metal começaram a tentar copiar o visual dos seres de carne e osso, com pele sintética, cabelo, olhos, e esses tipos de acessórios, viu-se o efeito reverso: as pessoas passaram a sentir repulsa pelos seus amigões de plástico.Uma situação intrigante. Por que as pessoas gostavam dos robôs quando eles lembravam humanos, mas não quando eles tentavam se passar por um? Juntando alguns estudos sobre o assunto, e o conceito do “Inquietante”, do psiquiatra alemão Ernst Jentsch, que propõe que as pessoas ficam incomodadas quando expostas a algo que é familiar, mas ao mesmo tempo diferente, surgiu a teoria do Uncanny Valley.
O nome pode ser facilmente entendido quando damos uma olhada no famoso gráfico que sempre acompanha as explicações. Nele, o eixo vertical representa a “familiaridade”, e o eixo horizontal a nossa aprovação. Perceba que quanto mais familiar algo torna-se para nós, mais gostamos. Entretanto, quando o objeto de estudo está alcançando a aparência humana, temos uma queda brusca, formando um vale, e depois subindo novamente, em direção a uma pessoa saudável. A essa depressão do gráfico, chamou-se “Uncanny Valley”, o Vale Estranho, onde estão as formas humanoides das quais não gostamos.
Por que atiramos em mortos-vivos?
E por que? Por qual motivo pessoas não acham robôs com pele de silicone, bonecos de ventríloquos e zumbis atraentes? Podem existir várias interpretações. O fato de não acharmos tais seres fisicamente atraentes (sim, no sentido que você não iria a uma festa pegar um(a) robô), deles lembrarem problemas patológicos e fazerem coisas que um ser humano normalmente não faria são apenas algumas possibilidades.“O uncanny valley pode ser sintoma de entidades que lembram o modelo humano, mas não o alcançam.” - MacDorman & Ishiguro, 2006, p. 303.
"Quanto mais humano um organismo parece, mais forte a aversão aos seus defeitos, porque defeitos indicam doença, organismos de aparência humana são mais estreitamente relacionados aos seres humanos geneticamente, e a probabilidade de contrair causadores de doenças como bactérias, vírus, parasitas e outros aumenta com a similaridade genética." - MacDorman & Ishiguro, 2006, p. 313.
Tá, mas eu adoro games de zumbis! Como é que eles estão no fundo do Vale? E eu também acho aqueles manequins de lojas lindos! - Leitor fã de Resident Evil e frequentador assíduo de lojas de roupaPosso não resolver fetiches por manequins de plástico, mas o desmembramento de zumbis tem explicação. Talvez a mais óbvia é que em vez de distribuir abraços, nesses jogos estamos distribuindo machadadas e tiros. Podemos gostar de algumas das figuras do Uncanny Valley, mas dificilmente as convidaríamos para nossas festas de aniversário.
Uncanny Valley nos jogos digitais
Legal, Bruno. Já sei tudo sobre esse tal de Uncanny Valley, mas isso aqui é um site de jogos, então, onde estão os jogos? - Alguém que já perdeu a paciênciaÉ verdade, mas toda essa introdução está aí por um motivo. Tudo que foi dito até agora pode ser aplicado a animações tridimensionais, que são o modelo predominante de gráficos de videogames atualmente. Ou seja, o que se aplica aos robôs, se aplica àqueles que habitam nossos consoles.
A discussão sobre o Uncanny Valley nos videogames, entretanto, surgiu bem depois dos jogos. No começo, a tecnologia era tão rudimentar que seres humanos nem ao menos figuravam nos jogos, e mesmo depois que nossas versões virtuais apareceram, elas eram tão caricatas que, embora soubéssemos que aquela imagem que estávamos vendo era a representação de um homem ou uma mulher, ela era tão diferente da realidade que não tínhamos preocupação alguma.
Com os primeiros jogos em 3D, contudo, a história começou a mudar. As representações de humanos passaram a conter mais detalhes e semelhanças. Mas foi com o GameCube, PlayStation 2 e Xbox que o Uncanny Valley tornou-se um problema para os animadores. A busca pelo efeito fotorrealístico ideal trouxe grandes avanços: agora os personagens não apenas se passam por pessoas normais, eles de fato as são. E isso, como dá para imaginar, fez eles caírem no gráfico do Uncanny, junto com os robôs de Masahiro Mori.
Os games nunca se pareceram tanto com o mundo real, e é isso mesmo que provoca estranheza. Talvez os jogadores não sintam repulsa, mas também é verdade que percebem as “deficiências” das nossas versões digitais. Uma das características mais emblemáticas é aquele movimentar constante e duro do corpo dos personagens, mas isso é cada vez mais coisa do passado. As principais causadoras do Uncanny Valley nos jogos atualmente são as animações faciais. Nós realmente levamos as informações do rosto muito a sério, e é aí onde temos falhado no design.
O motivo é o mesmo. Quanto mais melhoramos os gráficos e tornamos eles realísticos, mais notamos as suas falhas, justamente porque os comparamos com o mundo físico. E não é algo trivial, já que são os detalhes que chamam nossa atenção: piscadas não cronometradas, sorrisos falsos, lábios acompanhando a fala de forma nada natural, olhar vazio, dificuldade de identificar emoções... Nós somos humanos e percebemos facilmente esses pontos falhos.
Uma pequena observação: já existem jogos com gráficos realmente fantásticos, no que diz respeito a sua similaridade com o real. Armas, veículos, construções e paisagens extremamente fiéis. Todos esses fatores não afetam o Uncanny Valley, pois ele refere-se apenas à seres humanos (não aliens, mutantes, criaturas mágicas, etc.). Mesmo um jogo onde um helicóptero é aparentemente idêntico a um de verdade pode ter dificuldades com uma cena de choro.
Saindo do Vale Estranho
Então as pessoas nos jogos estão destinadas a não serem normais? Vamos nos contentar com isso? - Leitor preocupado com nossos amigos virtuaisFelizmente não só não precisaremos nos contentar com o Uncanny Valley, como muito já vem sendo feito para minimizar e até mesmo acabar com ele. Escolha abaixo qual o seu transporte favorito para fora do Vale Estranho. Entre parênteses, o nome de um jogo para exemplificar a sua categoria, para ver mais exemplos clique aqui.
1. Evolução gráfica
Esse é o caminho óbvio, continuar investindo dinheiro em tecnologia que possibilite cada vez maior processamento gráfico, captura de movimentos, físicas e texturas elaboradas, até, quem sabe, atingirmos o topo do gráfico, onde os personagens seriam idênticos a pessoas de verdade e as falhas provocadas pelas animações limitadas seriam irrelevantes. Teríamos, então, alcançado o fotorrealismo extremo. Jogos que representam a realidade, como os shooters ambientados em cenários reais (Call of Duty), games esportivos (Pro Evolution Soccer) e demais simuladores da vida real (Heavy Rain) tendem a buscar essa solução.Os videogames podem até pegar emprestadas algumas táticas de Hollywood, já que a indústria do cinema tem investido muito para alcançar animações que não pareçam animações. Embora filmes como A Lenda de Beowulf, Os Fantasmas de Scrooge e a versão rejuvenescida de Jeff Bridges em Tron: O Legado tenham recebido críticas negativas, Avatar mostrou que é possível.
Uma menção honrosa – Full Motion Video: já acreditou-se que, se o problema é a representação de pessoas, a melhor solução é usar seres humanos reais. Assim surgiu o FMV, utilizando atores reais nas cenas dos jogos. Eles eram filmados e depois inseridos no produto final, o que às vezes proporcionava um efeito humorístico, já que normalmente eram péssimos atores. Uma das poucas séries ainda utilizando essa técnica é Command and Conquer, título de estratégia da EA.
2. Estilização
Alguns leitores mais atentos podem ter notado que, mesmo sendo humano, um personagem como Mario não desperta as reações apontadas anteriormente. A resposta para isso é que não só Mario, mas também um grande número de jogos, permanece no primeiro pico do gráfico. Ou seja, os personagens são humanos, mas não tentam se passar por uma pessoa real.Seja um visual 2D (Muramasa: The Demon Blade), gráficos cartunescos (Pokémon), o efeito cel shading (Okami), as possibilidades são infinitas. Como muitos jogos não são representações do nosso mundo (pense na ficção cientifica, na fantasia, em todos os elementos surreais que existem nos videogames), não há porque não estilizar a aparência do game e torná-lo diferente. E não precisamos nos basear apenas em Mario, que definitivamente não é igual a um humano real, Samus Aran (Metroid Prime) e Master Chief (Halo), embora sejam mais parecidos conosco que o encanador baixinho, usam armaduras ficcionais que os diferenciam.
É interessante notarmos que as empresas ocidentais possuem uma tendência em buscar o fotorrealismo, enquanto as japonesas trabalham muito em cima da estilização. Como deve ser evidente, o ideal é buscar avanços nas duas áreas, melhorando os videogames tanto na parte técnica quanto na criativa.
Você sente-se incomodado com esse efeito ou consegue lidar bem com ele? De qualquer modo, o Uncanny Valley ainda estará presente nos jogos por algum tempo, nos provocando estranheza, variando de “que coisa horrível” até algumas boas risadas.