A maioria dos games cancelados são anunciados como grandes promessas, ficam anos sendo produzidos, liberando-se vídeos, imagens e informações em ritmo de conta-gotas, e no final saindo de cena, muitas vezes sem explicações claras e repentinamente, frustrando muitos jogadores. Winter, no entanto, tem uma história diferente. Esse survival horror permaneceu um bom tempo mantido em segredo, conhecido apenas por participantes da indústria de jogos e imprensa, especialmente um dos portais mais importantes sobre videogames, a IGN. Portal esse, por sinal, que realmente acolheu a ideia do jogo, instigando os jogadores com frases provocativas e prometendo anunciá-lo quando tivesse produtora.
O esperado momento, contudo, não aconteceu como o planejado. Em 20 de janeiro de 2009, a IGN revelou o jogo, mas com uma péssima notícia: o n-Space, estúdio que desenvolvia Winter, não encontrou uma produtora para o game, e parecia que o projeto se juntaria a outros tantos títulos no limbo dos jogos cancelados. O que se viu a seguir foi uma verdadeira novela, que envolveu opiniões de figuras da indústria dos videogames, várias revelações sobre o jogo, campanhas pelo seu lançamento e diversas promessas, que mais que sobre um game, nos mostra como funciona a indústria de jogos em geral. A história completa você confere a seguir.
Por dentro da nevasca de Winter
Antes de narrar os acontecimentos, nada melhor que conhecer o próprio jogo, não é mesmo? Winter surgiu da mente de Erick Dyke, ex-presidente e co-fundador do estúdio norte-americano n-Space, então responsável por títulos como “Geist” (GameCube) e “Call of Duty 4: Modern Warfare” (DS). Erick achava que o gênero survival horror havia seguido um caminho com muito mais ação e combate que sobrevivência propriamente dita, e desejava um retorno às origens em um projeto que lembrava o começo da série “Silent Hill”. Os funcionários rapidamente se apaixonaram pela ideia e os trabalhos começaram.
Quando falamos da origem dos survival horror, falamos de um personagem sozinho, que anda por cenários desolados e precisa fazer de tudo para se proteger. No caso de Winter, esse personagem é a jovem Mia, e o cenário é uma pequena cidade no centro-oeste dos Estados Unidos, atingida por uma misteriosa nevasca que só se faz piorar.
Nesse conceito original, começaríamos o jogo com Mia em uma ambulância estragada, saindo para reconhecer o local. À medida que explora, percebe sinais da existência de algo monstruoso que viaja na tempestade. No início, a maior preocupação da garota é apenas se manter viva, enquanto a temperatura cai cada vez mais. Para tanto, o jogador seria desafiado a encontrar comida e lugares aquecidos, por exemplo, tendo que escalar casas, investigar despensas e se virar com recursos limitados.
Os controles foram carinhosa e especialmente criados para proporcionar a melhor experiência com o Wii Remote. Seríamos convidados a reproduzir na vida real os movimentos de Mia. Precisaríamos apontar para a tela para controlar a lanterna, dando “batidinhas” quando ela falhasse, e segurar o wiimote e o nunchuck como seguraríamos as portas de um armário para abri-lo, inclusive definindo a velocidade da ação. Embora simples, esse sistema de controle é um dos mais cativantes e imersivos do Wii, mas infelizmente é pouco utilizado.
Os gráficos também seriam um avanço para a época. Se compararmos o vídeo de Winter com outros jogos para Wii de 2007 entenderemos o porquê, e o n-Space ainda garantiu que havia desenvolvido uma ferramenta que deixaria o jogo ainda mais caprichado.
O início promissor
O ano era 2007, em março, mais precisamente, e o local, a GDC, ou “Game Developers Conference”, maior conferência para desenvolvedores de jogos no Sistema Solar. Após doze semanas de trabalho para produzir um vídeo, um demo e melhorá-los, o confiante pessoal do n-Space está pronto para mostrar seu mais novo trabalho, e Winter, com a ambiciosa proposta de ser o melhor jogo para Wii possível, é revelado.
Nos meses seguintes, o jogo passou de produtora em produtora, recebendo sempre reações entusiasmadas. A qualidade de Winter também chamou a atenção de um grande site, a já citada IGN, que viu no game a oportunidade da plataforma da Nintendo se reabilitar com os chamados “jogadores hardcore”. Nessa época começaram os rumores sobre um jogo sombrio e muito interessante, que poderia aumentar o número de títulos maduros para o console, mas que só seria revelado quando fosse encontrada uma produtora.
O jogo certo no console errado?
Uma boa ideia, sendo desenvolvida para uma plataforma sem muitos concorrentes diretos para o título, por um estúdio realmente envolvido com o projeto e procurando a maior qualidade possível, que ganhou reações positivas da imprensa. Tudo parecia estar devidamente encaminhado para Winter.
Foi então que os ventos gelados começaram a soprar para o n-Space.
Qualquer grande produtora que procurassem, a resposta era sempre a mesma: “o jogo é ótimo, mas é um jogo para adultos em uma plataforma para crianças”. Ou seja, as produtoras estavam com medo de apostar em um game mais maduro para o Wii. E não adiantava argumentar, por exemplo, que Resident Evil vendera muito bem no console branco. “Mas Resident Evil é Resident Evil”, era o que respondiam. O problema não era apenas a temática, mas se tratar de um novo projeto.
A entrevista que revelou Winter ao mundo
Vinte de janeiro de 2009. Dois anos se passaram desde o começo do desenvolvimento de Winter e nada de uma produtora aparecer. Cansada de esperar, a IGN resolve publicar uma entrevista com o presidente do n-Space, Dan O'Leary, e o diretor criativo do estúdio, Ted Newman, juntamente com imagens do gameplay, artes conceituais e um vídeo. Além de todas as informações que você leu nos parágrafos anteriores terem sido reveladas nessa entrevista (confira aqui), Dan e Ted aproveitaram para criticar o modelo de negócios dos games e dizer que continuavam à procura de alguém interessado em produzir o seu jogo.
Confiram abaixo um fragmento:
“Os produtores estão perdendo um monte de oportunidades no Wii. Eles não podem aplicar as suas abordagens padrão para esta plataforma. Técnicas de projeção de vendas e análises de risco desenvolvidas ao longo dos últimos 20 anos já não funcionam, o que torna as pessoas muito inquietas. Eles não querem arriscar suas cabeças com uma projeção de vendas quando eles não são capazes de citar produtos comparáveis. Pegar qualquer coisa que não é um jogo infantil para o Wii é uma batalha difícil.
Os produtores ainda nos falam em uma base regular, "ainda estamos tentando descobrir o Wii." Já passaram mais de dois anos desde o lançamento e mais de três desde a primeira vez que o n-Space pôs suas mãos sobre os controles do protótipo. É meio irônico, realmente - você tem este console baseado em inovação, um console desacreditado por muitos no lançamento, que agora domina totalmente o mercado, e muitos produtores ainda hesitam em seguir o mesmo caminho, com jogos inovadores em todos os gêneros.” - Dan O'Leary
O comentário de Dan resume bem a situação do Wii na época (e, de certa forma, na atual). Mesmo sendo o líder de vendas, as produtoras temiam lançar jogos originais e diferentes para o console, por causa das diferenças significativas. O Wii era (e ainda é, na verdade) uma plataforma incompreendida, e talvez nunca saibamos quantos excelentes jogos deixamos de jogar por comodismo.
O fato é que as revelações da entrevista, mais o material disponibilizado que dava bases suficientes para os donos de Wii perceberem que ali existia uma grande obra em potencial, deram origem a um movimento pelo lançamento de Winter.
“Nós queremos Winter para Wii”
No começo de 2009, o Wii realmente não estava muito bem no que se refere a títulos mais maduros. “MadWorld”, “The Conduit”, “House of the Dead” e “Deadly Creatures” seriam lançados só um pouco mais tarde, sob a desconfiança dos gamers mais tradicionais, e jogos como “Monster Hunter Tri” e “Red Steel 2” estavam além da imaginação. Fãs da Nintendo e donos de Wii, além de entusiastas do gênero de terror, indignaram-se com o descaso das produtoras e iniciaram uma campanha em sites de games pedindo o lançamento de Winter. Eram vários os comentários internet a fora de pessoas que queriam sentir o frio na pele (ou seria na tela?).
Como símbolo dessa “luta” coletiva, foi criada uma petição online, a “We Want Winter for the Wii”, que alcançou 19.881 assinaturas. Ela ainda está aberta, caso queira deixar seu nome é só clicar aqui. Na verdade, durante a escrita desse texto, o número inclusive aumentou, então ainda existe quem queira o game. É claro que tanto clamor em torno de um jogo não passaria desapercebido, e Winter ganhou uma sobrevida.
Promessas e esperança
O interesse dos jogadores surtiu efeito, e, em fevereiro de 2009, o presidente do n-Space declarou que até o estúdio estava surpreso. O interesse das produtoras havia aumentado, e após terminar os seus sete projetos internos, poderíamos ouvir boas novidades sobre Winter.
Um mês depois, entretanto, um balde de água fria (ou seria neve fria?). Os maus resultados nas vendas de jogos de terror no Wii não caíram muito bem e os investimentos no game foram paralisados por tempo indeterminado. Paralelamente, uma fase demo foi criada para Nintendo DS, o que gerou especulações de que o jogo poderia ser lançado para outras plataformas.
Mais um mês se passou (será que o pessoal do n-Space estava contando os dias num calendário?) e novos rumores: o perfil de um diretor de arte do estúdio apareceu na internet, mostrando um jogo a ser lançado no 4° trimestre de 2010 para Wii. Como já passamos da metade de abril de 2011, acho seguro afirmar que, se esse projeto era Winter, as coisas não deram muito certo.
A nevasca é em 3D?
Mais de um ano se passou e as pessoas já estavam se esquecendo de Mia e sua gélida cidade, meio que conformadas com o provável não lançamento de Winter. Mas eis que Ted Newman, diretor criativo que apareceu pela última vez nesse texto na entrevista da IGN, resolve dar sua opinião sobre o futuro Nintendo 3DS. Entre um elogio e outro às características do portátil, aparece a seguinte fala (tradução do WiiClube):
“O 3DS é muito poderoso, além da já conhecida tela 3D, podendo gerar muitos polígonos e texturas em shaders. Essa capacidade não é segredo para ninguém. Tudo que fizemos no demo de Winter para Wii funcionaria no portátil – sem contar que dá para fazer bem mais coisas com um jogo de horror em 3D. Nesse exato momento já consigo pensar em 10 ideias.” - Ted Newman
Será que ainda existem chances para o survival horror, e fugiremos de aberrações tridimensionais? Só o tempo dirá, mas desde esse pronunciamento Winter nunca mais foi citado, e os jogadores, que agora já contavam com diversas alternativas de jogos no Wii, acabaram deixando o título de lado.
Considerações finais
Então Winter e essas criaturas que vimos nas imagens ao longo do artigo desapareceram sem maiores explicações. Algum dia teremos a oportunidade de jogá-lo? Difícil dizer, mas se o jogo ainda estiver em produção está bem guardado. O mais importante é a lição que essa história pode nos ensinar sobre como funcionou a 7° geração de videogames, em especial sobre como um console, mesmo campeão de vendas, não garantiu a confiança das third-parties.
Mas não fique triste, caro leitor. O jogo de inverno do n-Space pode nunca ser lançado, mas a ousadia desse estúdio levantou a discussão sobre games maduros no Wii, e pode-se dizer que foi responsável por uma maior atenção das produtoras no console. Se antes de Winter eram poucos os games com temática mais adulta, depois dele vimos um significativo aumento. Só no gênero do survival horror, que Erick Dyke queria trazer à plataforma da Nintendo, podemos citar os lançamentos de “Ju-On: The Grudge”, “Resident Evil: The Darkside Chronicles”, “Dead Space Extraction”, “Cursed Mountain”, “The Calling”, entre outros. Curiosamente, alguns elementos que estariam presentes em Winter, como o controle de objetos com movimentos no wiimote, estão em diversos desses jogos. Coincidência?
E claro, não podemos esquecer de um jogo que retornou às origens do gênero survival horror, que não é sobre ação e batalhas, mas sobrevivência. Um personagem sozinho, que anda por cenários desolados e precisa fazer de tudo para se proteger. Um jogo que originalmente se passava em uma pequena cidade tomada pelas chamas, mas que no Wii tornou-se uma pequena cidade assolada por uma nevasca misteriosa. Um jogo que carrega o nome da franquia que inspirou o começo dessa história toda: “Silent Hill: Shattered Memories”, lançado no começo de 2010.
É, parece que no fim nem tudo foi perdido.
Imagens: IGN.com