Mickey é muito mais do que um personagem. É um ícone. Ao longo dos seus 82 anos, a criação maior do gênio Walt Disney já debandou por todos os lados. Do cinema aos quadrinhos. Dos games a televisão. Mas, nunca em outra oportunidade a franquia foi utilizada com tamanha liberdade. É esse o grande trunfo de Epic Mickey.
Logo quando o anúncio de Epic Mickey se concretizou, foi meio difícil conter a euforia. Essa era a primeira vez que o personagem mor da Disney se arriscaria em uma aventura ousada e que ao mesmo tempo dialogava com suas oito décadas de história. O desenvolvimento nas mãos da Junction Point, parecia não poder estar melhor representado, afinal o time era encabeçado por Warren Spector, uma das grandes cabeças pensantes do universo dos games. Warren já tinha se aventurado em projetos diferenciados em outros momentos, mas nunca o designer pareceu tão apaixonado por sua criação como agora. Ao que tudo indicava, teríamos um dos games mais formidáveis de todos os tempos. Passado o tempo, chegou a hora de experimentar Epic Mickey. E, apesar das pequenas decepções, é um daqueles games raros, que jogamos poucas vezes ao longo da vida.
Uma longa aventura
Após uma primeira jogada, é complicado definir o que é Epic Mickey. Ao mesmo tempo que a definição dele como um game puro de plataforma parece simplista demais, é essa taxação que de alguma forma define a maneira como devemos olhar para o game: com o olhar da tradição de um gênero que cresceu junto com a indústria sem perder seus elementos chave. Mesmo que o projeto tenha uma atitude ousada logo de cara e, mais que isso, seja realmente uma aventura muito além do que tradicionalmente estamos acostumados a presenciar, ele ainda repete fórmulas e práticas muito recorrentes e vivenciadas por quem gosta de games de aventura. Saltos, plataformas que se movimentam, hordas de inimigos repetidos, chefes de fase bonachões. É interessante observar que a utilização desses elementos em momento algum deixa o game com cara de velho ou ultrapassado. Essa sensação foi impedida pela roupagem diferenciada que o título possui.
Epic Mickey utiliza, de certa forma, grandes mundos abertos onde a aventura se desenrola. Embora o jogador transite de um mundo para outro a todo momento, em poucas ocasiões ela parece linear. Isso principalmente porque a progressão da aventura se dá por meio da presença de quests. Logo que o jogador chega em uma área, conversa com um novo personagem ou supera um novo obstáculo, o jogo vai presenteá-lo com uma nova quest. São centenas, e boa parte elas podem ser completadas ou não, dependendo do gosto do freguês. Somente algumas delas são essenciais, sendo responsáveis pela progressão da história principal.
Ao mesmo tempo que o esquema de quests torna o game extremamente variado e hiperdimensionado, o jogador algumas vezes tem a sensação de que boa parte dessas aventuras paralelas são forçadas e sem vida. Algumas delas se resumem a atividades bobas, como encontrar itens, conversar com personagens ou movimentar partes do cenário. Como boa parte delas não são obrigatórias, essa característica acaba denotando uma certa inconstância criativa no game enquanto conjunto. O ideal talvez seria suprimir a quantidade para privilegiar a criatividade e a intensidade de determinadas aventuras paralelas, que acabam se perdendo em meio a tantos objetivos sem sentido.
Aliás, é importante que o jogador sempre consulte no menu todas as quests abertas, as que foram completadas, as que ainda podem ser completadas e as que foram perdidas. Isso mesmo, algumas das aventuras paralelas só podem ser vivenciadas em determinados momentos. Perdê-las na ocasião em que foram propostas significa não possuir uma segunda chance para serem vencidas. Por
isso, meu caro, atenção!
Steamboat Willie, onde tudo começou
Se você notar, muitas das primeiras fases são ambientadas em preto e branco. Sim, elas são uma homenagem mais que merecida ao curta Steamboat Willie, primeira aparição de Mickey Mouse. O curta, datado de 1928, é considerado o primeiro desenho animado com som, música e história interligados. Se tornou tão popular que acabou alavancando o sucesso do camundongo ao redor do mundo. Em Epic Mickey, o filme completo pode ser destravado e assistido na íntegra.
A trama
Epic Mickey começa com Mickey mais uma vez sendo transportado através de seu espelho para um local mágico. Essa é uma figura bastante utilizada nas aventuras do camundongo. Nesse mundo, Mickey se depara com Yen Sid, o feiticeiro protagonista do grande sucesso Fantasia (1940), pintando uma enorme maquete de um parque de diversões. Curioso como é, Mickey aproveita o descuido do mago e resolve dar uma bisbilhotada na criação misteriosa. Atrapalhado, Mickey esbarra na tinta e no solvente, mistura as duas substâncias e acaba criando um grande monstro negro de tinta, que destrói a criação de Yen Sid.
Tempos depois, Mickey fica sabendo – da pior maneira possível – que destruiu o mundo de Oswald, o coelho que sempre teve uma relação de rivalidade com ele. Nesse mundo, Mickey vai ter que conviver com uma série de ameaças e personagens que querem destruí-lo para vingas o ocorrido. É claro que ele vai querer reparar o acontecido e ainda sair vivo de lá – tarefa que não vai ser das mais fáceis.
Oswald The Lucky Rabbit – Pouca gente sabe, mas o grande vilão de Epic Mickey surgiu antes mesmo do camundongo sonhar existir. Sua estreia aconteceu um ano antes, em 1927. Mas, por ironia do destino, acabou no ostracismo todos esses anos. Em EM é o grande vilão da trama... pelo menos até entender melhor tudo o que aconteceu.
Ortensia – É a dedicada, esperta e amorosa namorada de Oswald. Curiosamente, pouca gente sabe que ela é um gato. Sua estreia aconteceu em Rival Romeos, um curta de 1928 que quase ninguém viu. Em Epic Mickey, ela terá um papel importante na conciliação entre os heróis – além de ser responsável por uma dose de emoção
na trama.
Clarabelle the Cow – Também cria da mente iluminada de Walt Disney, Clarabelle apareceu pela primeira vez em 1928, na animação Plane Crazy. É namorada de Horace Horsecollar. Em Epic Mickey tem um papel curioso, apesar de pouco importante para a trama em si. Mesmo assim, está presente com todo o seu charme.
Horace Horsecollar – Horace é um dos personagens mais importantes criados por Walt Disney e Ub Iwerks. A estreia aconteceu na animação The Plow Boy, de 1929. É considerado o melhor amigo de Mickey. Em Epic Mickey, o cavalo será um investigador de primeira, responsável por encontrar pistas durante a aventura.
The Mad Doctor – Estrelou sua primeira animação em 1933, onde já aparecia como o grande algoz de Mickey. Aqui, o cientista é responsável pela criação das engenhocas que serão utilizadas para destruir Mickey. Também foi ele que criou os Beetleworxs, robôs que povoam o game.
Gremlin Gus – Um dos personagens mais importantes da aventura, Gus, o Gremlin é quem vai dar o apoio necessário para que Mickey consiga vencer os obstáculos que aparecem durante a trama. Sábio, ele sempre sabe o que precisa ser feito, e fica balbuciando nas orelhas do nosso camundongo a melhor opção.
Shadow Blot – Vilão até maior que Oswald, o Mancha Negra é a criação resultante da mistura de tintas que Mickey faz no laboratório de Yen Sid. É uma versão do Phantom Blot, que era presença constante nos primeiros quadrinhos onde o camundongo apareceu.
Spatters – São os servos de Shadow Blot, sempre prontos para causar as maiores confusões para Mickey. Existem nas mais diversas formas e tamanhos, mas gostam mesmo é de causar problemas. Trabalham em conjunto com os Beetleworx, apesar de possuírem maior autonomia que os robôs, já que são dotados de inteligência.
Pete – Pete, ou Bafo-de-Onça aqui no Brasil, apareceu pela primeira vez na animação Alice Solves the Puzzle, datada de 1925. Sempre foi um dos personagens mais presentes nas aventuras de Mickey. Aqui em Epic fará aparições disfarçadas para tentar raptar Ortensia, seu novo objetivo amoroso.
Construir e destruir
Como todo mundo já sabe, principalmente pela grande expectativa depositada sobre ele, Epic Mickey possui uma mecânica central em sua jogabilidade baseada no uso de tinta e solvente. A todo momento o jogador é instigado a utilizar um pincel mágico, capaz de criar e apagar elementos dos cenários. Esse esquema de utilização dualista de elementos centrais na jogabilidade já foi visto em outros games do mesmo gênero. Aqui, era esperado que o uso conseguisse superar toda e qualquer tentativa anterior e ao mesmo tempo parecer interessante e variado.
Só que o que aconteceu foi exatamente o oposto. Embora a mecânica funcione bem e esteja extremamente adaptada aos controles, ela é empregada em momentos óbvios e simplistas. Desde o início ela funciona quase que de maneira intuitiva. Isso teoricamente é bom, porque parece que tudo o que deveria ser explicado o foi de maneira correta, mas ao mesmo tempo deixa a atividade minimizada, já que não força o pensamento, o raciocínio.
O design das fases privilegia a utilização das tintas, mas deixa bem claro onde elas podem ser utilizadas. Os objetos do cenário passíveis de interação sempre possuem cores quentes que se destacam em meio aos cenários - ou coisa do tipo. É bater o olho e saber o que precisa ser feito. Embora esse direcionamento torne o game fluente, ele deixa o jogador em uma atividade completamente óbvia. Como todo bom game de plataforma, Epic Mickey também exige que o jogador utilize
elementos do cenário com a mais extrema precisão. Além do salto (e do salto duplo, realizado quando se aperta o botão de pulo duas vezes), Mickey ainda dispõe de um ataque giratório, que permite que o jogador colete itens e atordoe inimigos.
Os inimigos, aliás, são muito bem projetados. Eles estão completamente inseridos dentro do enredo, tanto em seu design, como na maneira com que podem ser derrotados. É aí que entra um dos sistemas mais interessantes presentes em Epic Mickey, que infelizmente foi subaproveitado: a reputação. Ao encontrar um inimigo, o jogador pode usar tinta e trazê-lo para o lado do bem, ou então utilizar solvente e dissolvê-lo para sempre.
Quanto mais inimigos os jogadores levarem para o lado do mal, mais a aparência de Mickey vai se tornando “suja”. Na ideia original de Spector, dependendo da quantidade de inimigos derrotados com solvente, Mickey poderia adquirir uma aparência assustadora. Na versão final isso foi bastante atenuado, deixando o esquema bem inconsistente. Também é de certa forma bem estranho que
elementos construídos ou destruídos pelo jogador não perdurem. Destruiu aquela ponte e pensa que ela vai ficar assim? Basta passar por aquela porta e tudo volta a ser como antes, frustrando (e muito) quem espera continuidade.
Um mundo incrível
O que mais chama a atenção dos primeiros aos últimos minutos de Epic Mickey é a fantástica recriação visual alcançada pela Junction Point. Contando com a ajuda mais que necessária da Disney, a equipe atingiu o ponto máximo de equilíbrio com o visual do game. É muito gratificante pensar que ele não perdeu a ingenuidade, muito menos o aspecto fantasioso e sonhador que sempre marcou o universo Mickey. Nos cenários, as cores escuras predominam, apesar de existir o uso de tonalidades quentes, principalmente para evidenciar locais importantes dentro da trama. A maioria dos mundos inspirados em localidades “reais” ganhou uma roupagem bem interessante. Os destaques, sem dúvida alguma, são o Epcot, parte do Walt Disney World com sua grande estrutura que simboliza o planeta Terra, e o Rock’n’ Roller Coaster e sua enorme guitarra. É claro que você ainda vai se encantar com o castelo da Bela Adormecida, inspirado na construção mais famosa da Disneylândia, palco de um dos momentos mais interessantes de toda a aventura.
É muito bom perceber que a equipe de desenvolvimento teve um cuidado muito
especial para manter o mesmo sentimento despertado pelos filmes e localidades “reais” retiradas dos parques da Disney pelo mundo. O resultado é que qualquer um que minimamente tiver acompanhado a saga do camundongo vai perceber as referências e temáticas – claro que tudo com um toque sombrio e steampunk simplesmente louvável. O mais interessante disso tudo é que o visual conseguiu ser transposto com grande eficiência, utilizando o hardware do Wii com eficácia e de uma maneira poucas vezes vista. Cada uma das localidades é bela e bem construída, possui elementos interativos muito bem animados e personagens riquíssimos. Se o próprio Mickey já possui uma vivacidade tão incrível que nos dá a impressão de realmente existir, isso pode ser ampliado para inimigos, chefes e NPCs.
Todos foram criados com extremo cuidado e possuem ações naturais e ricas de detalhes. Mas, como já foi dito, é o uso perfeito de cores e o desenho fabuloso dos cenários que garante a ambientação e o clima ideal no qual o game se desenrola. Ainda bem que a Junction Point também percebeu que uma boa história não pode ser bem contada se não se utilizar os mecanismos necessários pra que isso ocorra. Primeiro, as partes importantes do game são visualizadas em cutscenes estilizadas simplesmente incríveis. Elas unem o que há de melhor no universo do camundongo – que são os traços de Walt Disney – com um acabamento modernoso que enche os olhos. Segundo, soube criar uma trilha sonora impactante, belíssimae rica de sentimento. É impossível não aumentar o volume e se inserir dentro da riqueza técnica e da inspiração que cada uma das composições possuem.
Quase lá
Após essa análise, você deve estar se perguntando: afinal, Epic Mickey é bom? A resposta é um sonoro SIM. Ele é inspirado, grandioso, bem projetado e historicamente importante. Só que, como você deve ter ouvido falar por aí, algumas coisas não saíram tão bem como a gente imaginava – e queria. A primeira dessas ausências sentidas é a falta quase que completa de trabalho de voz para ilustrar a aventura. Isso mesmo, pode lamentar.
No mais, é perceptível que faltou ao game um polimento maior em duas coisas. Primeiro, a câmera. Não são raros os frustrantes momentos onde ela se perde completamente, deixando o jogador a mercê do destino. Para um game de plataforma, onde a precisão dos saltos é essencial para se dar bem, essa é uma falha considerável. A segunda falta sentida é uma maior ligação e explicação entre as quests. Elas parecem a todo momento “soltas” e “deslocadas” uma das outras, dando a sensação de que são vários games dentro de um mesmo jogo. Com o avançar da trama essa sensação se perde um pouco, mas não tem como estranhar quando duas, três quests pipocam na tela quase que instantaneamente. Elas também são pouco explicadas, fazendo com que o jogador precise buscar muito mais sua intuição do que qualquer outra coisa. Ficar perdido é inevitável.
No fim, Epic Mickey é sim um dos games mais interessantes desse ano, embora apresente falhas que ninguém esperava que acontecessem. Se você gosta do Mickey, é um fã do trabalho de Walt Disney e está procurando um game bem tradicional, tenho certeza que vai gostar muito. No mais, esse é um raro exemplo de game que vai te deixar empolgado. E olha que são longas 14 horas na aventura principal, amparadas por um bom visual e por uma trama divertida. No fim, faltou aquele algo mais, mas nada que uma sequência não possa resolver…
Epic Mickey – Nintendo Wii – Nota Final: 8.0
Gráficos: 9.0 Som: 9.0 Jogabilidade: 8.0 Diversão: 8.0