Em 1986, o Yuji Horii da Enix Fez Dragon Quest; em 1987, o Hironobu Sakaguchi da Squaresoft fez Final Fantasy. Sakaguchi disse não ter se inspirado em Dragon Quest para criar seu jogo. Ele provavelmente não mentiu.
Não, minto. Ele com certeza não mentiu.
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A saga do melhor J-RPG de todos os tempos
A razão pela qual o seu jogo pode ter ficado muito parecido com Dragon Quest é pelo motivo que ambos Sakaguchi e Horii foram influenciados pela série de RPG para PCs Ultima e o jogo não-eletrônico Dungeons & Dragons – ache uma mente aberta e vamos caçar uns dragões imaginários. Dragon Quest é pra Ultima o que Pac-Man foi pra Missile Command – uma reinterpretação categórica que conseguia ser ao mesmo tempo menos vaga e mais misteriosa que o original. E Final Fantasy era pra Ultima o que Super Mario Bros. foi pra Centipede – é mais direto, mais divertido.
As duas séries cresceram lado a lado, Final Fantasy continuando a impressionar e divertir (a seqüência figurava com quase meia-dúzia de veículos que o jogador podia controlar, incluindo uma galinha gigante chamada Chocobo, uma canoa, um barco, um barco de gelo e um barco voador) e Dragon Quest continuou a se aperfeiçoar em suas metas originais. Quando a era 16-bit começou, Final Fantasy evoluiu (ou denegriu, você escolhe) para contar estórias que envolviam Hoovercrafts, robôs gigantes, e uma viagem para lua; Dragon Quest, enquanto isso, ainda era sobre pequenas estórias simples, sem reviravoltas ou algo do gênero. O Super Famicom viu as duas produtoras (e seus times talentosos) no auge de suas séries: Dragon Quest V, um jogo casual, descompromissado e ainda assim com o efeito sísmico de um Roman-fleuve biográfico. Já Final Fantasy VI era uma excitante extravaganza, numa estória que tinha quatorze personagens principais. Então, quando foi anunciado que, por qualquer razão miraculosa, os dois times responsáveis por esses jogos iriam trabalhar juntos em um jogo chamado Chrono Trigger, todo mundo que comprou a edição da Famitsu que incluía o preview exclusivo literalmente e figurativamente explodiu.
Yuji Horii, Hironobu Sakaguchi e Akira Toriyama estavam juntos para chutar bundas e criar um jogo sobre viagem no tempo.
Yuji Horii escreveu a maior parte do roteiro do jogo antes mesmo da produção começar. O tema era “viagem no tempo", um conceito infinitamente mais ambicioso que qualquer outra coisa já vista em qualquer RPG. Horii admitiu abertamente que muito de sua inspiração para Chrono Trigger veio da série de TV americana “Time Tunnel” embora também existam quase certas referencias a “Doctor Who”, observando como a estória se desenrola alternando entre contextos episodicamente casuais e então apocalipticamente importantes. O conto começa quando um jovem garoto esbarra (literalmente) com uma jovem garota numa feira; em momentos, brota uma amizade entre eles, e justo quando eles estão começando a se conhecer de fato, eles encontram a amiga de longa data do jovem garoto, que é uma amável cientista que está demonstrando seu mais novo experimento, uma máquina de teletransporte. A jovem garota acaba se voluntariando a ser cobaia pro experimento, e é sugada pra dentro de um vortex misterioso, depois que a máquina apresenta um grave defeito. Sem pensar duas vezes, o garoto decide segui-la, e também entra em um vortex, ainda que advertido dos perigos que isso pode ocasionar. Ele então encontra a garota cem anos no passado, onde ela foi confundida com a rainha perdida de um reino que está celebrando seu milésimo aniversário. O garoto acaba resgatando a rainha perdida, e, em subseqüência, salva a garota, embora assim que ele volta ao futuro, é preso por ter fugido com ela.
Esse é um ponto bem importante; uma seqüência extremamente virtuosa acontece aqui, envolvendo o julgamento e o aprisionamento do personagem principal. O jogo engenhosamente gravou as ações do jogador na feira, onde você teve a oportunidade de roubar e comer o almoço de um homem, ou mesmo fazer uma criança chorar. Se você foi um bom-moço, você pôde achar o gato perdido de uma garota, marcando pontos com o júri. Mas não importa o quão bem você se saiu: você vai pra cadeia de qualquer modo. Em um uso de câmera de tirar o fôlego, com zooms rápidos e cenas com o ângulo metamórfico, Chrono Trigger impressiona o jogador com o sentimento de pavor: o personagem principal está sendo levado por uma ponte, embaixo de uma lua sinistra, mãos e pés algemados, e levado por um cara mal. Nesse exato momento, todas as ferramentas do kit de idéias do “J-RPG” estão sendo usadas ao mesmo tempo, transformando o jogo de uma vez só no equivalente videogame dos anos 90 de “E o vento levou”. Todas as peças cruciais estão no lugar, ambos física e emocionalmente – e embora o jogador tenha acabado de padecer as cores da maturidade em um videogame segundos atrás, tendo uma batalha em uma igreja possuída, o terror de ser falsamente acusado e aprisionado, agora esperando sua pena de morte, nada impede que os amigos de nosso herói apareçam na hora H e uma excitante cena de fuga acontece. Momentos após isso, novamente acontece uma viagem no tempo, e seus companheiros não tem a menor idéia de onde o portal vai dar. E acaba sendo o mundo destruído de 2300 AD, onde os humanos sobreviventes amontoam-se, famintos, em cidades-cúpula dilapidadas, mantidos vivos por uma máquina que rejuvenesce seus corpos, ainda que deixe seus estômagos vazios. Andando um pouco pelas periferias da cidade morta do futuro, infestada por mutantes, leva o grupo a encontrar um computador que, quando ativado, mostra a ultima gravação da próspera civilização humana no ano de 1999 AD: o dia em que um alienígena demoníaco parasita chamado Lavos saiu da crosta terrestre e jogou todos os carregamentos de napalm na existência em cima da terra. Sendo testemunhas dessa lastimável catástrofe, os três amigos juram descobrir os segredos da viagem no tempo e prevenir a destruição do mundo.
O pontapé emocional “um-dois-três” de Chrono Trigger coloca tudo nos trilhos. Até esse ponto, nós já tivemos desenvolvimento amigável de personagens durante uma feira, nós vamos a um passado onde podemos presenciar ação medieval no ano de 600 AD, nós temos uma cena de julgamento de volta ao presente, e finalmente temos a revelação do fim do mundo prematuro. O resto da história acontece enquanto os personagens vão para sete eras cruciais da história do mundo, indo de volta até 65,000,000 BC para achar uma pedra que conserta a lendária espada Masamune, que é levada por um herói (que foi transformado em um sapo humanóide) para derrotar um mago do mal chamado Magus, que é suspeito de ter invocado no ano 600. Acaba sendo uma caça ao bode expiatório – Magus não é um sujeito ruim; ele está invocando Lavos porque ele quer matar o monstro, para acertar as contas de uma tragédia que aconteceu no passado, e nesse ponto nós nos tocamos que passamos as últimas horas de gameplay estragando seu plano honesto e honrado.
E então, é bem nesse ponto que a estória se desenvolve em diversas direções selvagens. É como se fosse uma série de TV voltando para sua segunda temporada – novos personagens são introduzidos, velhos personagens mudam, pontos importantes e esquecidos da estória renascem das cinzas. Os fragmentos mais selvagens e imaginativos do jogo acontecem no ano de 12,000 BC, no auge de uma civilização iluminada, onde um misterioso profeta entoa os ritos de aviso do Armageddon iminente para uma rainha vã que deseja construir um enorme palácio no meio do oceano – que vai tirar toda sua energia elétrica do parasita adormecido que está no núcleo da terra. Essas seqüências de script foram todas escritas por Masato Kato, o homem que foi responsável pela invenção das cut-scenes cinemáticas de Ninja Gaiden da Tecmo.
O tema de desenvolvimento de Chrono Trigger era, até então, “talento”. Algo me diz que tudo foi idéia de Yuji Horii – pegar pessoas talentosas e junta-las em um propósito unificado, deixar todos fazerem o que eles se sobressaem fazendo, e então colocar os resultados juntos para criar um resultado extremamente polido.
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O design de Chrono Trigger
Até mesmo Akira Toriyama brilha em Chrono Trigger. O êxito de Toriyama em Chrono Trigger se deve ao fato que ele fez exatamente o que era esperado dele. O personagem principal, Crono, é uma reinvenção do estereotipo Son Goku, de Dragon Ball, de cabelo pontudo, agora com uma espada samurai e com o HeadBand anos 80 na cabeça; a garota, Marle, é uma versão mais simplificada e limpa de Bulma, agora vestida de branco; Lucca, com seus óculos grandes e corte de cabelo vagamente masculino, é claramente uma Arale-Chan na adolescência. Arale, pra quem não lembra, foi a personagem principal de Dr. Slump, o mangá que colocou Toriyama no mapa. Frog é a representação da estranheza costumeira das obras de Toriyama: ele é vagamente familiar, mas ainda assim é diferente de tudo que Toriyama jamais desenhou antes ou depois. E o que dizer do arqui-rival de Frog, Magus? Ele é um sujeito que parece um vampiro, e usa uma foice, e tem alguns complexos existenciais brandos. Ele pode lhe lembrar um pouco como Vegeta iria parecer se Dragon Ball tivesse sido influenciado pelo Senhor dos Anéis em vez de Jornada ao Oeste. Robo, o robô (do futuro) exibe o talento de Toriyama de fazer com que tecnologia pareça moda, com seu estilo singular. E por fim, Ayla, a mulher das cavernas, é a marca registrada de Toriyama: a loira peituda que está nos sonhos de Sembe Norimaki. E todos esses personagens tão diferentes e caricatos juntos formam um grupo memorável, que Toriyama inventou com uma graça excepcional.
Chrono Trigger tem um design artístico bem-orquestrado, mesmo sob uma perspectiva moderna. E o que é essa modernidade? Ao passar dos anos, nós só retrocedemos. Nos dias de hoje, os jogos da série Tales of… abre com uma cena totalmente animada com algum som popular do Japão tocando ao fundo. E mesmo assim, todos os jogos da série começam sem a metade da vida de Chrono Trigger, com uma câmera estacionaria em personagens estacionários. Enquanto isso, muitos anos atrás, Chrono Trigger era capaz de fazer gente sonhar alto com imagens-pôster desenhadas por Toriyama, imagens que nem nunca aconteciam de fato daquele jeito no jogo. E isso era apenas a campanha promocional do jogo. O talento gigantesco de Toriyama – novamente, mesmo que você não goste dele – é assustadoramente mais visível nessas cenas promocionais. Todos os aspectos positivos da série que durou décadas, Dragon Ball, está presente nessas imagens de Chrono Trigger: uma batalha contra Magus na parte de fora de seu castelo de 600 AD, uma cena com Lucca consertando Robo na casa dela em 1000 AD, a máquina do tempo planando nos céus do ano de 1999 AD, uma batalha em um misterioso coliseu, uma épica batalha de Crono, Marle e Frog contra uma Yeti gigante (imagem que inclusive, acabou sendo miraculosamente escolhida como a capa americana do jogo, mesmo estando nos anos 90, onde os produtores temiam pela popularidade dos animes e se inclinavam mais a recriar bisonhamente as ilustrações de RPGs para que elas se aproximassem mais de coisas como Dugeons & Dragons.) Essas cenas fora do jogo, que foram introduzidas dentro da cultura pop por intermédio de revistas japonesas, fizeram muito mais que a musicalidade ou qualquer cut-scene encontrada no jogo para estabelecer o ritmo de Chrono Trigger.
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Todo o resto sobre o 'jogo-evento'
Quando alguém fala de Chrono Trigger, o primeiro nome que aparece normalmente pertence a Akira Toriyama, o roteirista Yuji Horii ou mesmo ao compositor musical Yasunori Mitsuda. Porém, muito do feeling do jogo se deve a Hironobu Sakaguchi, que se inspirou pra ir dois passos mais longe com Chrono Trigger depois de ver o pedaço de ambrosia com show de luzes consciente que foi Final Fantasy VI, que tinha diversos segmentos virtuosos, como o da “Opera House” em que a general Celes se passa por uma prima Donna da ópera em pleno êxtase dos 16-bit, inclusive emocionando gente que fica acanhado quando ouve músicas em MIDI, muito provavelmente se tornando uma relíquia bizarra hoje em dia. Tudo o que acontecia ao mesmo tempo durante a seqüência “Opera House” foi meramente um experimento por parte de Sakaguchi, embora eu ouse dizer que nada da patética paleta de cores dos J-RPG jamais tenha ido mais longe que isso em qualquer incursão posterior. Os eventos de 600 AD no castelo de Magus particularmente rivalizam vagamente com “Opera House”, mas com partes de design de gameplay real inclusas por toda parte, com mini-chefes aparecendo a cada passo que você dá, partes pseudo-side scroolers, e de repente você desce uma escadaria gigantesca em que música satânica toca ao fundo.
Agora isso é feeling. Não é uma simples dungeon de um RPG, disposta de um modo metódico: você está realmente está fazendo um ataque-surpresa no castelo de Magus, no propósito de matar o sujeito. De um modo como as pessoas sonham que um dia os MMORPG possam ser.
Futuramente, os desenvolvedores de RPG iriam interpretar Chrono Trigger erroneamente para conseguir seus lugares ao sol – o jogo era, sem duvida alguma, a redefinição de dungeons para um RPG, ao preferir construir um caminho linear e limpo, com chefes aparecendo no caminho, com uma simples premissa ponto A, ponto B, e com isso, criou certa tendência. Xenosaga e Final Fantasy X forçam o jogador a perambular por corredores sem vida com batalhas randômicas e diálogos simples e estúpidos antes de ir para uma batalha contra um chefe. No entanto, esses jogos são uma carcaça morta e sem sangue quando comparados com Chrono Trigger, um quase-milagre de videogame, nascido da atenção e do amor pelo oficio dos seus criadores. E por que não, Chrono Trigger também é um jogo divertido de diálogos rápidos e com parte do humor pateta e divertido de Dr. Slump (Se você só jogou a versão americana do jogo, eu lhe garanto que a escrita é magnanimamente mais esperta na versão nipônica.).
Reviewers da época elogiaram o jogo pela mais variada gama de motivos, inclusive sua considerada “Trama fantástica”, seus finais múltiplos dependendo do que você faz no jogo, e seu visual fantástico. A Eletronic Gaming Monthly (que a muito, muito, muito, muito tempo atrás era uma boa fonte de informação e de opiniões bem colocadas) que só existia nos estados unidos até então, foi certeira e calculista ao observar com fascínio que o jogo tinha 32 megabytes. É óbvio que também houve observações erradas. Por exemplo, o fato que os críticos não pararam pra ver direito o sistema de batalha do jogo. Ao invés de ir a uma tela preta e depois a tela de batalha, o jogo sempre deixava os personagens visíveis, e os menus simplesmente subiam, e a batalha iria fluir normalmente como qualquer batalha em pseudo-tempo real a lá Final Fantasy. Isso estava longe de ser “a morte das batalhas randômicas” como muitos críticos pensaram – era apenas um pequeno e consciente trabalho de reforma, e chegou a ser uma alusão de trabalho de design de gameplay para desenvolvedores por metade de uma década. E, conforme o jogo progride, quase nenhuma batalha durante todo o curso pode ser evitada.
Você ia, lutava rapidamente, não precisava de uma chata transição de tela, você tinha a pequena variável, você tinha que pensar uma vez ou duas. E às vezes um sapo gigante aparecia e pisoteava todo mundo, e não levava meia hora pra isso acontecer, como um Summon de Final Fantasy.
Até hoje me impressiona que Chrono Trigger foi feito de verdade! O tamanho da criatividade, e o tamanho da “audácia da Filombeta” desse jogo beiram o imensurável. A pequena e bobinha história, que é uma extravanganza assim como Final Fantasy VI, só que camuflada, é como se fossem quatro temporadas de uma série de TV, os personagens são tão amáveis e carismáticos quanto qualquer um que você encontra nas obras de Akira Toriyama. Você até sente a transição das “temporadas”. Os engenhosos múltiplos finais e o “New Game +” deixou o jogo com a alma de um jogo completo em todos os sentidos. Isso sem mencionar as fantásticas inspirações de Yasunori Mitsuda pra criar o contexto musical do jogo. No futuro, mais games vão tentar fazer a formula vencedora de Chrono Trigger parecer obtusa, e não dá pra reclamar: quando você para pra pensar, videogames são sim apenas uma comodidade. Mas mesmo que seja triste, mesmo depois daquela CG com explosões e um cara com uma espada gigantesca, você ainda vai jogar Chrono Trigger e ver como ele ainda é obscenamente completo, bem mais do que qualquer CG com explosões.
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