O fato parece pontual, mas não é. Ele revela muito do estereótipo relacionado aos jogadores gays – que não são muito diferentes das ideias pré-concebidas que as pessoas têm dos homossexuais em geral. Você sabe, as pessoas sempre esperam que você escolha a Peach quando joga Mario Kart ou prefira jogos fofos de plataforma do que FPSs realistas de guerra. É aquela visão idiota e batida de que existe um “gosto de gay” e que a gente só se interessa por um bando de coisas coloridas saltitantes e alegres embaladas por alguma música pop descerebrada.
Se eu quiser escolher a Peach eu escolho e ninguém tem nada a ver com isso #revolts |
Quem são os gaymers?
Até hoje, nenhum estudo foi realizado no Brasil para mapear a orientação sexual dos jogadores e como eles veem o conteúdo dos games que jogam e de que forma a sua sexualidade influencia na relação com outros jogadores. Lá fora, esse tipo de estudo não é exatamente recente.O primeiro deles realizado pela Universidade de Illinois em 2006 ouviu mais de 10 mil pessoas. Ele foi o primeiro a mapear a existência de um público jogador abertamente gay – e também detalhes sobre seus gostos, anseios e percepções. Mas o dado mais relevante do estudo mostrou que boa parte dos jogadores gays experimentaram “alto nível de atitudes homofóbicas”. Essas atitudes vão desde xingamentos em jogos online até exposição a linguagens e diálogos pejorativos. E eles reclamam em um ponto: os games não os representam e eles são sim parte significativa do mercado.
O apocalipse gaymer
Pense bem, quantos games com personagens gays você viu nos últimos tempos? Poucos, não é? Pois é, os próprios desenvolvedores ainda são receosos ao inserir conteúdo – seja personagens, situações, elementos, referências – abertamente gay em seus projetos. Isso não fica muito distante do que acontece na música, no cinema, na TV. É um fenômeno cultural.
Esse conservadorismo no conteúdo é mais forte no ocidente. Os japoneses tem uma visão um pouco diferente da história toda. Por lá, os mangás com temática gay masculina, os yaois, estão entre os mais vendidos, muito consumidos inclusive por garotas. Além disso, as referências homossexuais nas tramas são mais evidentes. É só lembrarmos da Birdo cross-dresser de Captain Rainbow ou do romance lésbico entre um robô e uma humana em Xenosaga. A cultura oriental parece estar mais preparada para lidar com essas questões.
Em Captain Rainbow (Wii), Birdo é presa por usar o banheiro "errado" |
Pais raramente conversam sobre temas gays com os filhos. E a gente bem sabe que isso serve para perpetuar a ideia de que tudo o que é gay é digno de pouca aceitação. Se personagens e situações abertamente gays aparecerem com mais frequência, o diálogo será estimulado e preconceitos poderiam vir a ser derrubados. Aí entram os games, que também poderiam desempenhar um importante papel educacional.
Pequenos avanços
A realidade parece apocalíptica a primeira vista, mas não é bem assim. Exemplos recentes mostram que, mesmo com o protesto de gamers conservadores, as produtoras tem realizado alguns avanços. É o caso, por exemplo, de Mass Effect 3, que permite até um relacionamento homossexual entre o protagonista e um personagem presente na história principal. Mesmo com toda a polêmica na época, o fato é tratado com uma naturalidade absurda dentro da história do próprio game, sem grandes estardalhaços. Outro exemplo bem bacana é Dragon Age II. Lá, o personagem principal pode se envolver com personagens femininos ou masculinos, de uma maneira natural e sem grilos, exatamente como deveria ser.
Mass Effect 3 e a cena que causou polêmica. É justo? |
O que queremos?
A visão de que os games espelham a realidade – e, como tal, trazem consigo muito do modo de vida, da maneira de ver o mundo e dos pensamentos de quem os produzem – já é dominante para qualquer estudioso do assunto. Se a sociedade ainda conserva fortes traços de homofobia, o próprio conteúdo dos games atuais também revela essa faceta do real. É um espelho.
Por isso, os games mostram aquilo que foi definido como o padrão. Os protagonistas são sempre brancos, héteros. Há uma visão pré-concebida que diz que jogadores héteros não aceitariam jogar como protagonistas gays. E por que raios jogadores gays precisam aceitar – sem possibilidade de escolha – interpretarem toda vez personagens heterossexuais?
Tente se imaginar gay convivendo todo dia com publicidade, cinema, programas de TV, tudo criado para um público que não é você. As pessoas costumam dizer que os gays querem privilégios ou vantagens. Mas não é isso: os gays querem apenas aquilo que héteros já tem. Eles querem se identificar, querem ver suas histórias e dramas, seus medos e convicções, seus anseios e experiências, naquilo que consomem. É exigir demais?
A gente tem a tendência de pensar que a vida é como é e assim sempre será. Isso só tem uma função: fazer com que tudo permaneça sempre como já é, que nada se altere ou que nenhuma conquista seja alcançada. Mas a gente precisa acreditar que um cenário diferente é possível. Jogadores gays consomem como outro gamer qualquer, tem gostos tão particulares e complexos quanto qualquer outro público.
Eles só precisam de uma indústria que os respeite e que, cada vez mais, reconheça a sua existência.
Revisão: Thyago Coimbra Cabral