Você certamente já viu alguma comparação entre cinema e vídeo games. Natural, são as duas maiores indústrias de entretenimento e compartilham muitos pontos em comum, inclusive fãs e espaço na cultura pop. Mas às vezes tais comentários parecem deixar turvas as definições entre jogos e outras mídias, não apenas os filmes, e de certa forma colocam os games de lado em busca de objetivos diferentes.
O que é um jogo?
Não dá para responder a pergunta acima em um único fragmento de texto. Na verdade, nem um texto inteiro bastaria. Mas ela é necessária para começarmos esta discussão. De onde vem os jogos eletrônicos atuais? Sua origem é extremamente antiga, tanto quanto a história humana. As primeiras competições, brincadeiras infantis, esportes, aventuras são ancestrais do que, após anos de mudanças e aperfeiçoamentos, chegou às nossas mãos e telas. Uma simulação interativa de uma realidade, possível ou não, existente ou não.
Acredito que o ponto central, que sustenta qualquer jogo, seja virtual ou não, é a sua jogabilidade: a forma como interagimos com ele. Não é, evidentemente, o único, mas é ponto de partida para a construção do resto. Isto porque a jogabilidade é a forma como o jogo se apresenta ao jogador, como o percebemos, da mesma forma que lemos um livro ou escutamos uma música. Jogabilidade, então, assume aqui um sentido mais amplo que apenas “os controles do jogo X”, significando a maneira como nos comunicamos com os games e como eles se comunicam conosco.
A simplicidade e o minimalismo dos primeiros jogos eletrônicos, mesmo que forçados por limites técnicos e criativos de uma mídia que acabava de nascer, de certa forma atesta essa ideia. Títulos como Pong são praticamente jogabilidade pura. Tivemos uma evolução impressionante desde então, ainda mais se lembrarmos que são apenas sessenta anos de história, na qual vimos diversos acréscimos à fórmula básica, não só referentes à jogabilidade, mas também visuais, narrativos, sonoros, entre outros. Que jogos eletrônicos não se reteriam apenas a mecânica básica como, por exemplo, um jogo de cartas, já estava claro desde o começo. Um game “antigo” como Space Invaders já contava com uma história, a invasão de aliens, no caso.
Colisão e interseção
Toda essa introdução foi para mostrar, ou pelo menos tentar, a jogabilidade como essência dos jogos. Isto difere bastante das heranças dramatúrgicas e narrativas do cinema e da literatura, ou mesmo das plásticas, embora estas também estejam muito presentes nos videogames. Um jogo atualmente é a junção de tudo isso. Qual o motivo, então, desta discussão? É que não é incomum ver profissionais ligados a games, do jornalista ao desenvolvedor, apontando estas características de uma forma um tanto peculiar.
Basicamente, mesmo que não seja a intenção explícita, defendem que um jogo deveria ser menos um jogo e mais outra coisa. Como foi dito, um game atualmente é a junção de diversas características, mas a essência é a jogabilidade. Guitar Hero, por exemplo, é um jogo de música, mas continua sendo um jogo.
O problema começa quando se presta mais atenção nos elementos externos do que na própria jogabilidade. Você certamente já ouviu ou leu sobre a velha discussão se histórias de games são tão boas ou melhores que as de um filme, certo? Produtores e desenvolvedores volta e meia defendem que jogos precisam seguir um modelo hollywoodiano para alcançarem um grau de qualidade que games supostamente mais “simples” não teriam.
História será usada aqui como um exemplo por ser um dos aspectos mais comuns, mas poderia ser qualquer outro, como gráficos, personagens, áudio, etc. Então, por que não faz sentido uma comparação entre a história de um filme e de um jogo? Será que uma é melhor que a outra ou é um modelo a ser seguido?
Vamos começar a responder estas questões com um pequeno exercício. Peguemos o filme Invictus (2009) e o game Madden NFL (ano de sua preferência). Ambos são esportivos (Invictus sobre rúgbi e Madden sobre futebol americano, porque eu não conheço um filme de futebol americano ou um jogo de rúgbi, desculpem). Qual o papel da história em Invictus? Central, afinal o filme está justamente nos contando uma. E em Madden? Bom, podemos ter várias respostas, desde “não há história” até “tenho a história de como fiz meu time ser campeão”. Na prática, serve para notarmos o quão diferentes filmes e jogos podem ser.
Mas tudo bem, realmente há jogos cuja estrutura está muito mais próxima do cinema e que contém uma narrativa tradicional. Mesmo nesses casos, não podemos simplesmente assumir que uma boa história em um filme ou em um game seria a mesma coisa. Explicar o que define uma boa “narração” em um jogo merece um texto próprio, mas o ponto aqui é que há quem não veja diferença e espere que ambas as mídias tenham a mesma experiência, ou que os jogos são “inferiores” por “não alcançarem o cinema nestes aspectos e este é um erro a ser corrigido”.
Pensar assim é esquecer o que vimos no começo do texto, como a jogabilidade é o ponto central de um game. Em um filme, assim como num livro, mesmo que de maneiras diferentes, o público é passivo. No caso da história, ela está sendo diretamente passada a você, basta estar prestando atenção. Um game é radicalmente diferente, pois o jogador é ativo em relação à história, manipulando os acontecimentos (mesmo que eles sejam pré-determinados), explorando o ambiente por conta própria, interagindo com o cenário e com os personagens. Existe um grau de liberdade e de poder dado a quem joga que não é possível se obter com um filme.
Pense assim: no cinema estão contando uma história, nos vídeo games você está participando dela.
Por mais óbvio que isso pareça (qualquer um que jogue sabe dessa diferença fundamental), essa busca em “melhorar os jogos tentando aproximá-los da grandeza do cinema” existe e é prejudicial. Prejudicial porque seguindo o molde do cinema, a história deixa o jogo engessado. É algo até fácil de entender, afinal se em um filme somos passivos, ao tentar reproduzir a mesma estratégia em um jogo é preciso abrir mão da liberdade do jogador. E aí aparecem cutscenes gigantes, diálogos intermináveis e jogabilidade de menos.
Diria que um jogo feito com esta tentativa de cinematização em mente está condenado a ser medíocre. Pode soar muito drástico, mas a história não ficará tão boa quanto ficaria num filme, pois são formatos incompatíveis, e as partes de jogo acabam sendo deixadas de lado. Talvez você já tenha jogado algo que tenha dado dessa sensação, de que a história poderia ter sido melhor se fosse independente e que o jogo em si não era tão bom.
Bruno, está dizendo que os jogos tem histórias ruins? - Leitor inconformado
Não, não, não. Eu, assim como grande parte de vocês, presumo, sou um grande fã de ficção. Mesmo. Em livros, filmes, peças de teatro e, é claro, jogos. Mas não posso esperar que formas de expressão tão diferentes entreguem ou tentem entregar o mesmo tipo de experiência. Games são capazes de contar excelentes histórias, desde que elas sejam o jogo, não inseridas artificialmente como comerciais no meio de um programa.
Também não é o caso de demonizar cutscenes, por exemplo. Elas têm sua função e são necessárias em vários jogos. Mas quando você se depara com um game com muito tempo de cenas programadas, pode começar a desconfiar.
É necessário fazer uma observação a respeito dos adventures, gênero muito popular de jogos, especialmente nos computadores na década de 80 e 90, e que hoje ainda existe na cena indie e influencia fortemente títulos modernos como Heavy Rain e L.A. Noire. Neste gênero específico, temos muitas vezes histórias interativas, com mecânicas focadas na resolução de puzzles. Em todo caso, o que temos não é um abandono ou desprezo pela jogabilidade (embora tal tipo de jogo esteja sujeito a este problema tanto quanto os outros), mas sim uma mecânica diferenciada que funciona para este modelo.
Promover o intercâmbio de elementos entre diferentes mídias é enriquecedor. O problema é quando tentamos torná-las algo que elas não são.
Revisão: Alex Sandro