Da RARE com amor, no distante ano de 1997, veio ao mundo o que muitos consideram o melhor jogo de tiro em primeira pessoa de todos os tempos. Incontestavelmente um dos títulos que definiram o Nintendo 64 (e toda uma geração de gamers), GoldenEye 007 é um daqueles raros jogos virtualmente perfeitos, desde sua jogabilidade afiada até a trilha sonora viciante. E é exatamente a fantástica música deste clássico que vamos relembrar no Game Music de hoje, somente para seus ouvidos.
Pela Inglaterra, James?
Se você parar para pensar sobre o assunto, vai perceber que fazer trilhas sonoras para um game do agente 007 é uma das tarefas mais fáceis do mundo. Afinal, para buscar inspiração há mais de vinte filmes e um time de compositores que, se listados aqui, consumiriam todos os caracteres que eu tenho disponíveis neste texto. Mas fazer uma trilha digna de ser lembrada para sempre, capaz de fazer frente às sensacionais composições dos filmes do agente, este sim é um desafio de verdade. Um desafio assumido por dois britânicos a serviço de sua majestade e apaixonados por videogames.
A trilha sonora de GoldenEye 007 foi composta pelas mentes geniais de Graeme Norgate e Grant Kirkhope. Não os conhece de nome? Pois deveria. Ambos passaram a vida trabalhando especificamente com trilhas sonoras de videogame. O escocês Kirkhope compôs as músicas memoráveis de clássicos como Banjo-Kazooie, Perfect Dark e Donkey Kong 64, enquanto o inglês Norgate trouxe ao mundo verdadeiras joias sonoras nas trilhas de Blast Corps e Killer Instinct. Quando você avalia o currículo dos dois, não é nada surpreendente que o trabalho saído dessa parceria em GoldenEye 007 seja simplesmente brilhante, certo?
Confira o que Grant Kirkhope tem a dizer sobre seu trabalho no jogo: “GoldenEye 007 foi meu primeiro grande título pela Rare (embora eu não tivesse noção disso na época). Quando cheguei lá, em outubro de 1995, fui colocado para trabalhar na conversão de Donkey Kong Country 2 para o GameBoy. Fiz isso bem rápido e então fui chamado para ajudar em GoldenEye 007, já que o Graeme Norgate estava bem ocupado com Blast Corps. Sabia que nós tínhamos o direito de usar o tema original do 007 composto por Monty Norman e então comecei. Foi uma diversão imensa escrever aquelas músicas. Perdi a noção de quantas vezes ouvi as canções-tema dos filmes, provavelmente centenas! Foi a primeira vez que trabalhei com design de som também, então minha primeira tarefa foi encontrar um monte de sons de tiros de armas e ricochetes bem exagerados, claro!” (traduzido do site oficial do compositor, http://www.grantkirkhope.com)
Licença para jogar
Já que o próprio Kirkhope assumiu ter ouvido os temas dos filmes centenas de vezes, parece correto começar a apontar as influências das músicas do game pela trilha sonora que Éric Serra compôs para o filme homônimo. Em toda justiça, a música incidental de Serra é bem discreta e acaba sendo pouco marcante quando comparada ao excelente trabalho que David Arnold fez nos filmes subsequentes ao GoldenEye. Ainda assim, é possível notar que os compositores do jogo tentaram ao máximo utilizar as partes mais relevantes do trabalho de Serra para seu jogo. Possivelmente o tema do game mais influenciado pela obra de Serra é a música da fase Facility, com seu som bem industrial, remetendo a batucadas em canos e marretadas em aço, também presentes no filme. Compare:
Como não poderia deixar de ser, e como Kirkhope revelou ter sido seu ponto de partida, a trilha de GoldenEye 007 também busca espelhar-se no tema original de James Bond composto por Monty Norman, que todo ser humano que não passou a vida preso numa caverna reconhece instantaneamente em qualquer lugar. Observe como a fase Runway faz uso do tema perto do fim:
Peculiarmente, mesmo aproveitando bastante de suas fontes cinematográficas, a trilha sonora do jogo possui identidade própria. Talvez a decisão mais sábia de Norgate e Kirkhope tenha sido justamente não abusar tanto da licença para utilizar os temas cinematográficos de James Bond. Ouça, por exemplo, o tema da fase Cradle:
Embora você consiga identificar todas as características de uma típica música de ação do agente secreto, ela evita ao máximo os clichês sonoros dos filmes. Sua pesada guitarra e a linha de baixo frenética estão muito mais próximas de uma música da banda britânica Muse, não acha?
Uma faixa que considero digna de nota por sua coragem é o “tema” Cuban Jungle. Uso aspas aqui porque sequer temos uma música nesta fase. São somente sons da floresta em loop eterno, o que garante uma incrível sensação de imersão a este que é um dos níveis mais marcantes do game.
Há também uma boa pitada de música eletrônica dançante nas composições com teclado synth ao longo de toda a obra. Não por acaso, se você buscasse informações sobre a trilha sonora do game na internet da época (lembre-se que era 1997 e nem todos os sites vinham com o selo Nintendo Blast de qualidade!) podia acabar esbarrando com falsos anúncios sobre a banda alemã Kraftwerk trabalhando na trilha sonora. Engraçado notar que o trabalho de Kirkhope em Perfect Dark acabou puxando muito mais para esse lado das composições com teclados, mas isso é assunto para outro Game Music.
Cartuchos são eternos
Não é impressionante o modo como tantas grandes músicas couberam num simplório cartucho de Nintendo 64? Não sei quanto a vocês, mas esse tipo de coisa realmente me coloca para pensar. Quer dizer, vejam o GoldenEye que a Activision lançou para o Wii. Embora seja um jogo bem decente, desafio você, leitor, a me apresentar uma única música memorável deste jogo. Tanta pompa e orquestração acabam não servindo de nada no fim das contas. O DVD do Wii possui uma capacidade de armazenamento de dados muito superior à de um cartucho de Nintendo 64. São horas a mais de música para gravar em muito mais qualidade de som! E, ainda assim, a maioria das trilhas (tanto de GoldenEye para Wii como dos demais jogos modernos que usam DVDs ou Blu-rays para armazenar seus dados) não conseguem fazer frente a este trabalho de um mero cartuchinho de Nintendo 64. Pergunto-me se ao invés de nos importarmos tanto em colocar a tecnologia dos jogos em constante avanço, não deveríamos nos preocupar mais com os talentos por trás dos games, e como eles vão poder tirar o melhor do hardware que têm em mãos. Dê uma rápida pesquisada na internet e veja como os dons de Graeme Norgate e Grant Kirkhope foram pouco utilizados depois da geração 64 bits. Nós, jogadores, banalizamos o termo “épico”, chamando assim todas as trilhas orquestradas de videogame. Ironicamente, quase nada do que se grava hoje chega perto do brilho e relevância das antigas gravações de GoldenEye 007. O que seria épico de verdade então? Não vale mais a pena investir em talentos do que investir puramente em hardware?
Enquanto você pensa no assunto (não deixe de comentar sua opinião), vou fechar o texto relembrando minha faixa favorita do jogo:
Que tal parar um pouco com os simuladores ultra realistas de guerra que os jogos de tiro em primeira pessoa se tornaram e revisitar o clássico GoldenEye 007 para Nintendo 64? Chame três amigos, bata aquele multiplayer competitivo esperto e, acima de tudo, curta a trilha sonora e jogue bastante. Viva e deixe jogar! Afinal, com GoldenEye 007 só se joga duas (mil) vezes.
Revisão: Luigi Santana