Quando trabalhamos com ficção, podemos contar com certos elementos e técnicas narrativas para montar e avaliar uma história. Desde o momento em que jogos passaram a conter um enredo desenvolvido, estes elementos passaram também a integrar o complexo conjunto do que é um game, por isso é interessante para qualquer entusiasta conhecê-los e entendê-los. O escritor Anton Chekhov reconheceu uma destas técnicas, e é ela que veremos agora.
Quem é Chekhov?
Anton Pavlovich Chekhov (também conhecido como Tchekhov ou Tchecov) nasceu na Rússia em 1860. Durante grande parte de sua vida profissional foi médico, mas foi como autor e dramaturgo que se destacou e alcançou a fama.
Sendo considerado um dos maiores contistas da história, focava-se não no enredo, mas sim no estudo dos personagens. A temática em geral girava em torno da depressão das pessoas com as suas vidas, permitindo que os leitores e espectadores percebessem seus sofrimentos e fizessem algo para mudar a situação.
Chekhov morreu em 1904, aos 44 anos, no Império Alemão. Deixou importantes contribuições para a literatura mundial, destacando-se as peças A Gaivota, Tio Vânia, As Três Irmãs e O Jardim das Cerejeiras, além de diversos contos, como A Dama do Cachorrinho.
A Arma de Chekhov
Agora que você já conhece o escritor, vamos ao que interessa neste texto, os elementos narrativos. A Arma de Chekhov recebeu o nome graças a algumas frases proferidas por Anton e deu origem às outras técnicas, que nada mais são do que derivações do conceito original.
“Ninguém deve colocar um rifle carregado no palco se ninguém estiver pensando em dispará-lo.”
“Se no primeiro ato você colocar uma pistola na parede, no seguinte ela deve ser disparada. Em outro caso não coloque ela lá.”
“Se você diz no primeiro capítulo que um rifle está pendurado na parede, no segundo ou terceiro capítulos ele deve absolutamente ser disparado. Se não irá ser usado, não deveria estar lá.”
- Anton Chekhov
Esta técnica caracteriza o aparecimento de um objeto aparentemente insignificante em uma história, que mais tarde revela-se importante. É importante entender que a “arma” aqui é apenas representativa, e pode ser substituída por um escudo, uma vara de pescar, um Game Boy Advance ou o que você quiser. Vejamos um exemplo.
João parte em uma jornada para livrar o mundo de uma maldição terrível. Antes de partir, sua avó lhe presenteia com um medalhão dourado, muito legal da parte dela. Nosso personagem atravessa o mundo todo com o tal medalhão no pescoço, embora ele quase não seja mostrado e não faça nenhuma diferença na trama. Isto até que João finalmente parte para o confronto final com o Rei dos Demônios e, no momento mais crítico da luta, “wow”, o medalhão é mágico e possui o poder de aprisionar Reis Demônios. O mundo está salvo mais uma vez. Valeu, vovó!
Quando bem executada, esta técnica pode fornecer boas soluções para os conflitos de uma obra. Em compensação, quando não é bem aproveitada, no caso do tal medalhão aparecer de uma forma totalmente fora do contexto e de maneira anticlímax, podemos estar diante de um caso de Deus ex Machina.
A arma e o jogo
“Deu para entender o que é, mas que importância tem isso num game?” - Leitor impaciente com a aula de literatura
É claro que em qualquer jogo com uma história um pouco mais avançada, um RPG, por exemplo, a Arma de Chekhov pode aparecer em seu formato tradicional. Um resultado ainda mais interessante pode ser obtido, entretanto, se lembrarmos que em games é comum juntarmos todo tipo de item (os enormes inventários estão lá por algum motivo, afinal).
Imagine The Legend of Zelda. Na série da Nintendo, é regra colecionarmos itens ao longo de diversas dungeons. Parte destes equipamentos possui uma utilidade apenas momentânea, tornando-se apenas mais peso para o pobre do Link carregar por Hyrule. Outros possuem diversos usos ao longo da jornada, e por isso mesmo estão sempre em destaque. Mas há ainda os itens que recebemos, utilizamos um pouco e depois parecem dispensáveis. Isto é, até você chegar naquela parte do quinto templo e descobrir que ele é necessário para avançar.
Mais uma vez, essa técnica pode ser uma faca de dois gumes. Se bem feita, recicla jogabilidades de maneira inteligente e dá uma sobrevida aos artefatos do game, além de possibilitar viradas no roteiro. Por outro lado, se não for bem planejada, os jogadores podem chegar ao ponto de não saber o que fazer para avançar sem ajuda, pois não conseguem relacionar o item usado há tanto tempo com o desafio atual. Outro “efeito colateral” é um possível desgaste ou falta de criatividade na mecânica do game.
Derivações
O site tvtropes possui uma compilação das principais variações da Arma de Chekhov. Todas partem do mesmo princípio, diferindo basicamente no modo como são implementadas e no objetivo planejado. Algumas delas são:
- Bumerangue de Chekhov: quando uma mesma Arma de Chekhov é utilizada mais de uma vez.
- Arsenal de Chekhov: várias Armas de Chekhov em uma mesma obra.
- Presente de Chekhov: o caso do medalhão do nosso exemplo anterior. Acontece quando um presente aparentemente sem importância revela-se fundamental mais adiante na história.
- Habilidade de Chekhov: quando uma habilidade comum do personagem será de alguma forma útil na solução de um problema na história.
- Psicologia da Sala Vazia: muito utilizada em games. Os jogadores esperam que todas as áreas de um jogo possuam um significado ou razão para existirem.
- Arma de Chekhov inversa: o autor sabe que você está esperando por uma Arma de Chekhov, então prepara tudo para dar a entender que determinado objeto é especial, mas no momento crítico dá um jeito para que ele não possa ser usado ou seja inútil.
- Isto pode ajudar na sua jornada: itens fornecidos ou encontrados que aparentemente são apenas lixo ou sem uso, mas você sabe que serão necessários na sua aventura.
Se você chegou até este ponto do texto, parabéns. Uma nova técnica de construção de narrativas foi adicionada ao seu inventário. Guarde bem, quem sabe um dia ela não será útil?
Revisão: Vitor Tibério