Nos últimos anos, o visual passou a ter um peso importante no processo de desenvolvimento de um game. Com a rápida evolução técnica dos consoles e o crescimento da participação de profissionais de arte no processo de criação dos jogos, vimos surgir muitos conceitos visuais memoráveis em títulos dos mais diversos gêneros. Exemplos não faltam: temos o minimalismo de Vib-Ribbon (PlayStation), o Cel Shading de Jet Set Radio (Dreamcast), o visual pintado com giz de cera de Super Mario World 2: Yoshi’s Island (Super Nintendo) e por aí vai.
Nos últimos dez anos, praticamente todas as grandes franquias tiveram que se adaptar a essa nova realidade. Conseguir unir um visual único a uma boa ideia de gameplay era meio caminho andado para o sucesso. E esse também foi o caso de Zelda.
Dos meros sprites aos polígonos
Logo em sua concepção, lá em 1986, o visual de Zelda era bastante simples e funcional. Além da limitação técnica imposta pelo hardware do NES, é possível perceber que a Nintendo procurou manter fórmulas utilizadas em outros games lançados para o sistema. A presença de uma palheta de cores reduzida fez com que o visual utilizasse como recurso determinante a presença de um grande contraste entre claro e escuro, tudo para valorizar os poucos elementos presentes nos cenários. Já em Zelda II: The Adventure of Link, é possível observar uma sensível melhora no aspecto visual, proporcionado principalmente pela melhor utilização de elementos plásticos nos cenários.
Já com a ampliação da capacidade técnica proporcionada pelo Super Nintendo, é visível o crescimento da qualidade dos elementos plásticos – cada detalhe passou a ser pensando de forma mais profissional, proporcionando um resultado mais satisfatório. Para muitos, A Link to the Past é o grande responsável por criar a identidade da série, seja na estruturação do próprio mundo de jogo, seja no cuidado com a composição visual de cada ambiente.
Esse cuidado com os detalhes ganhou nova dimensão em Ocarina of Time e em Majora’s Mask, dois games que elevaram a riqueza de significações dos elementos visuais às alturas – mesmo que tenham alterado muito pouco as características visuais básicas. O que aconteceu aqui foi uma espécie de novo olhar sob mecânicas que já haviam se consagrado.
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Um mundo novo
A primeira vez que a concepção visual apareceu como elemento essencial em Zelda foi no épico Wind Waker. Ali, o visual não era apenas um elemento complementar – ele era o próprio conceito central de toda a experiência. É impossível imaginar a história que é contada, o tom da aventura e os acontecimentos sem ligá-los diretamente ao visual cartunesco, apelidado carinhosamente de toon shading. Apesar de comprometer o realismo, esse estilo visual torna as animações mais cômicas e bem acabadas, o que aumenta consideravelmente um aspecto importantíssimo para o jogo em si: o carisma. O resultado foi tão positivo que a Nintendo acabou adotando o mesmo estilo em Phantom Hourglass e Spirit Tracks, conseguindo superar as limitações técnicas do DS com a utilização de um estilo que consegue “maquiar” as imperfeições.
Por fim, temos o estilo adulto, sujo e realista adotado em Twilight Princess. Com cores mais escuras, cenários enegrecidos e um quê de fantasia medieval adulta, o game surpreendeu ao adotar um estilo mais moderno, inclusive com a riquíssima construção dupla de ambientes – o bucólico e carismático mundo “real” em contraste com o Twilight, desordenado, escuro, incompleto.
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Primeiras impressões
E eis que chegamos ao mais novo game da franquia, Skyward Sword. Logo em sua primeira aparição, muita gente estranhou o estilo visual que a Nintendo havia adotado. Não era exatamente realista, nem tão pouco cartunesco. Era algo mais próximo de Ocarina of Time do que de Twilight Princess. Mas tinha algo ali que era diferente de tudo o que a série tinha apresentado até então. Apenas algumas horas após o anúncio, isso durante a E3 2010, Shigeru Miyamoto confessou: a principal inspiração para o visual vinha das pinturas impressionistas de Cézanne. O céu, uma das características mais marcantes dos trabalhos do pintor francês, foi reproduzido fielmente na nova saga de Link.
Tomamos como exemplo a ilustração abaixo, primeira peça do trabalho de arte de Skyward Sword revelada oficialmente.
Ela foi utilizada pela equipe de desenvolvimento justamente para exemplificar o estilo visual que seria adotado na aventura. Observe primeiramente o céu: há uma predominância de tons claros, que parecem ter sido despojados com um pincel sem muita direção definida. Há várias intensidades diferentes, como se o céu refletisse a luz do sol – sol este que não está presente na imagem. Essa reflexão da luz é percebida também na árvore, que tem sua tonalidade levemente alterada pela incidência da luminosidade. Os contornos – tanto do céu e do solo como da árvore e das montanhas ao fundo – mesclam-se entre si. Todas essas características fazem parte da concepção estética do impressionismo.
Cézanne, o homem que inspirou Miyamoto
O pintor francês Paul Cézanne, nasceu em Aix-en-Provence no dia 19 de janeiro de 1839. Sua grande obra começou a ser produzida muito cedo, embora tenha adotado uma linguagem mais dramática e romântica em seus primeiros trabalhos – uma influência de outro pintor francês, Eugène Delacroix. Foi só nos últimos anos da década de 1860 que ele começou a criar um estilo próprio que o tornou um dos principais expoentes entre os pós-impressionistas. Muitos acreditam que o Cubismo, movimento posterior ao pós-impressionismo, só foi possível graças ao trabalho minucioso de Cézanne.
Os personagens e suas formas
Embora os cenários tenham se tornado mais interessantes com a nova palheta de cores, foi o design dos personagens que mais se enriqueceu das possibilidades desse estilo artístico.
Repare no visual de Link. Primeiramente, é impossível perceber linhas que definem o contorno dos seus braços, pernas ou vestimentas. Os limites são mesclados, lembrando um borrão, só que sem o incômodo estético que geralmente esse tipo de elemento causa. Esse efeito é conseguido graças a uma utilização sistematicamente perfeita das cores que se complementam entre si – principalmente na exata criação de sombras e formas.
O estilo visual impede o que vemos em muitos games do Wii: os serrilhados. Como as laterais de todos os elementos gráficos possuem esse “embaçado”, o visual ajuda a maquiar a falta de excelência técnica do console.
Em todo trabalho de arte revelado até o momento, é deslumbrante a maneira com que a Nintendo utilizou cada palheta de cores. Há uma mescla exuberante entre tons, que torna todo o universo de jogo muito mais agradável. É lógico que há uma perda significativa na transposição desses desenhos 2D para o game em si, mas o resultado final consegue ser ainda muito satisfatório.
Por fim, é interessante mencionar outra referência bastante visível. Abaixo, está presente, lado a lado, um famoso quatro de Monet, “Impressão, Nascer do Sol”, considerado o primeiro quadro de todo o movimento impressionista. Repare que é muito difícil perceber onde começa/termina céu e mar, assim como é difícil dimensionar os limites do barco presente nesse grande “borrão” resultante de pinceladas rápidas em uma tela. É exatamente essa a impressão que temos ao visualizar a artwork do lado direito, revelada pela Nintendo em 2009, durante a E3 – ela foi o primeiro contato da imprensa e do público com Skyward Sword, que nem havia sido revelado oficialmente. Além da similaridade de cores, ambos possuem as formas pouco nítidas e é justamente essa indefinição que intriga o olhar.
Impressionismo? O que foi isso?
Para quem não se lembra, o impressionismo foi um movimento que surgiu na pintura europeia no século XIX que privilegiava a cor em detrimento da forma. Historiadores da arte consideram “Impressão, Nascer do Sol” (1872), de Claude Monet, a primeira obra impressionista, justamente por apresentar muitas das características que se tornaram marcantes na pintura deste estilo: o uso despojado do pincel, a preocupação com a incidência de luz e a preferência por manchas e cores ao invés das linhas. A ideia era captar a primeira impressão ao se visualizar uma imagem, daí o nome impressionismo.
Entre os principais impressionistas estão nomes como Claude Monet, Edouard Manet, Edgar Degas e Auguste Renoir.
Posteriormente, já no final do século XIX, surge a segunda fase do movimento, onde os expoentes máximos foram o francês Paul Cézanne e o holandês Vincent van Gogh, que ampliaram ainda mais a utilização da cor e a dissolução das formas.
Tá, mas o que isso significa?
Significa que você vai ter um game histórico em mãos. The Legend of Zelda Skyward Sword é a mais recente prova do estreitamento entre a arte e videogames. Nos últimos anos, conseguimos perceber incontáveis séries que buscaram em várias expressões artísticas diferentes a inspiração para se tornarem produtos culturais com valor estético reconhecido. Porém, me arrisco a dizer, ninguém nunca atingiu o nível de influência proposto pelo game da Nintendo. As referências, que geralmente são sutis, aqui aparecem de forma escancarada. E isso é muito positivo.
Se você ainda procurava algum motivo a mais pra experimentar Skyward Sword, agora já tem: ele é uma pequena obra de arte na tela da sua TV. Aprecie sem moderação.
The Legend of Zelda Skyward Sword será lançado em 20 de novembro.