Saudações, gamers! Nessa segunda coluna do Analógico eu pretendia começar a falar de roteiros de jogos. Não sobre como fazer um, pois isso você pesquisa no Google e acaba achando algum tutorial (se bem que talvez eu faça um mais pra frente, quem sabe?).
O que eu ia fazer nessa segunda coluna era analisar o roteiro de um jogo ou de uma série específica. Entretanto, percebi que há alguns aspectos relacionados à construção de histórias e personagens que devem ser melhor explicados antes de adentrarmos nas análises dos roteiros em si. Um desses aspectos é algo universal, que permeia praticamente todas as histórias, e que está muito na moda ultimamente: A jornada do Herói, ou Monomito.
Esse tema, familiar para quem tem ouvido o Nerdcast ou já pesquisou um pouco sobre mitologia, tem como embasamento a obra O Herói de Mil Faces do antropólogo Joseph Campbell. Ok, eu sei que com as palavras livro e antropólogo inclusas nessa coluna (pior, juntas na mesma frase), a impressão é que será algo super-entediante. Mas nem comece a bocejar, pois isso tudo tem um bocado a ver com você e seus amados jogos!
Então, voltando à explicação, e sendo o mais sintético possível: Campbell percebeu, ao longo de anos de pesquisa, a existência de certos padrões universais nos mitos. Tais padrões são o que tornam os mitos tão poderosos, pois geram a nossa identificação com eles. E não estou falando aqui apenas dos mitos mais conhecidos, como Zeus, Afrodite e Odin, mas de coisas que vêm de antes, desde as pinturas rupestres da época dos finados Neandertais (um bom tempo atrás, acredite).
E o mito mais poderoso, digamos assim, presente em todas as culturas, é o do herói. Este também se apresenta através de padrões (comuns todos os mitos do herói) nas obras ficcionais, mas sempre com uma cara diferente: o nome dos protagonistas muda, as situações mudam, os problemas mudam, mas a essência é a mesma, composta pelas mesmas etapas, que podem estar bem-definidas ou condensadas. Essa jornada do herói representa, meio que metaforicamente, os acontecimentos de nossa vida, de nosso dia-a-dia, e por isso que gera uma identificação tão poderosa (e inconsciente, em nossa cabeça pouco-acostumada a parar para analisar as coisas). Cada vilão derrotado por um personagem representa um dragão que matamos em forma de dever-de-casa, projeto no trabalho, superação de um medo como falar em público, ou mesmo algo trivial como sair para fazer compras. E não é só o “derrotar do dragão” que estou falando, mas de todos os aspectos que compõem a jornada do herói.
Tal jornada está presente nas obras que consumimos, seja no cinema, livros, mangás, e... jogos! Sim, nossos amados jogos. E estes têm um apelo ainda mais poderoso (na opinião deste que vos escreve), porque são interativos! Você não apenas vê e se identifica com a jornada do herói, mas você a “vive”!
Ok, estou explicando demais aqui. Pra sintetizar essa questão toda, incluí no final desta coluna um vídeo super-monótono que fala um pouco mais sobre isso tudo de Jornada do Herói e demais conceitos, como o inconsciente e os arquétipos, nos quais Campbell se baseou em suas pesquisas. Deixei no final justamente para você não o ver agora, senão irá dormir (não achei nenhum vídeo mais dinâmico em português, sinto muito).
Voltando à nossa programação normal, aqui chegamos ao ponto desta semana, que é identificar elementos da jornada do herói, nos jogos. Ela divide-se em 12 estágios, os quais não necessariamente precisam estar bem-definidos. Às vezes eles estão condensados e misturados. Vejamos alguns deles:
Mundo Comum
Como no começo de toda história, o herói vive em seu estado de normalidade. Não é ele sossegado de pernas pro ar tomando um refri na praia, refiro-me aqui ao que é cotidiano para ele. O que ele faz todo dia e que, se a história não acontecer, permanecerá sendo a mesma coisa.
Nessa etapa o nosso amigo Mário está no Mushroom Kingdom fazendo... o que ele faz em seu tempo livre, hein? Bom, provavelmente batendo um papo com o Toad, passeando com o Yoshi, ou, quem sabe, planejando tomar uma atitude de vez e se casar com a Princesa Peach.
Samus Aran está à procura de alguma recompensa para caçar; Link está na Floresta Kokiri quebrando vasos e cortando grama; Solid Snake está vivendo numa boa no Alaska; Travis Touchdown está endividado, vendo animês e bebendo no bar.
São situações que podemos classificar como “a calma antes da tempestade”. Não quer dizer que seja algo calmo, apenas são o que compõe o cotidiano da pessoa. Por exemplo, Leon Scott Kennedy é um agente do governo (um pouco antes dos eventos de Resident Evil 4), e o dia-a-dia dele é ser mandado em missões do governo. A ação é o cotidiano dele. Os eventos de Resident Evil 4 é que tornam a coisa especial.
Essa etapa da história apresenta o protagonista, ou alguns personagens já, e outra coisa muito importante: você é introduzido no universo da história. Se há magia, aventura espacial, etc, alguns desses elementos já serão visíveis e lhe contextuarão. Este universo em que a história se passa poderá mudar posteriormente, claro, mas a sua essência já é apresentada. Nos jogos, os elementos visuais contribuem drasticamente nesta apresentação do universo.
O Mundo Comum é o que nos situa inicialmente na jornada do herói.
O chamado da aventura
É o que quebra o cotidiano do herói e apresenta um desafio ou aventura para ele.
É aí que a Princesa Peach é capturada (pra variar...). É aí que alguém chega pro Phoenix Wright pedindo que ele seja seu advogado de defesa. É aí que Terra encontra o Esper no começo do Final Fantasy 6. É aí que [seu nome aqui] usa um Pokémon pela primeira vez em uma batalha acidental ou quando o Professor Oak o intima para ser um treinador. São muitos os exemplos.
Não quer dizer necessariamente que o herói seja “chamado”. Ele pode não ter outra opção, como o Rayman, em Rayman Raving Rabbids: ele é simplesmente capturado e ponto final.
Uma forma do Chamado da Aventura muito utilizada em jogos é a chegada de um vilão que muda o mundo do herói, como em de Blob.
Fazendo um paralelo com nossas vidas de Homo Sapiens, temos os diversos chamados, desde os mais simples, como sua mãe que pede pra você ir comprar pão, até os que demandarão mais tempo, como um convite para participar de um mega-projeto no trabalho ou faculdade, ou mesmo um pedido de namoro.
Assim, quer queira, quer não, o chamado da aventura sempre virá, porque tanto as nossas vidas como os jogos se movem por mudanças. Não é à toa que quem sempre busca a ilusão da estabilidade não cresce como pessoa. Entretanto, ter um pouco de medo e recusar inicialmente uma aventura é algo normal. Na próxima semana, falarei dessa etapa e das próximas que compõem a Jornada do Herói.
É aí que a coisa fica um pouco mais complexa, diversificada e interessante. São as etapas nas quais os enredos se desenvolvem de fato. Até agora, no Mundo Comum e no Chamado da Aventura, tivemos o básico que nos situa no dia-a-dia do herói e na quebra do mesmo. Em seguida, os elementos da jornada se diversificam, a porrada (autêntica ou simbólica) começa e a coisa fica bacana.
Pra quem quer conhecer melhor a obra de Campbell, recomendo muito A leitura de O Herói de Mil Faces e o DVD O Poder do Mito. Ambos vocês podem encontrar à venda online (e infelizmente não estou ganhando nada pra fazer esse jabá). E, se você conseguiu ler até aqui, não esqueça de comentar com críticas, dúvidas e sugestões, ok?
Fiquem abaixo com o vídeo (do qual falei antes) e até a próxima, heróis!